Quando se teve a certeza de que a Covid-19 havia chegado ao Ceará, há exatos cinco anos, o mundo ainda sabia pouco sobre a doença. Mas, olhando para fora do Brasil, especialmente para a Itália, já era possível compreender a rapidez com que o vírus se espalhava e o impacto que ele causaria na capacidade assistencial das redes de saúde. Para agravar as incertezas daquele momento, não era possível saber os números de casos de forma precisa devido à escassez de testes. Foi nesse cenário que cientistas utilizaram dados, modelagens e algoritmos para “antever o amanhã”.
Diversas pesquisas científicas foram realizadas no no Ceará para entender a dinâmica da pandemia. Uma delas foi realizada por uma equipe multidisciplinar que acompanhou a evolução da Covid-19 Estado e, a cada semana, fornecia dados, projeções e gráficos para atualizar as autoridades sobre a dinâmica da doença.
Liderada pelo atual cientista-chefe de Dados da Saúde do Governo do Estado — o professor José Soares, do Departamento de Física da Universidade Federal do Ceará (UFC) —, essa iniciativa ajudou a direcionar as ações para superar a crise sanitária. Foi ela, por exemplo, que alertou para a necessidade de tornar o isolamento social mais rígido, o que levou à adoção do lockdown em Fortaleza em maio de 2020.
Outro estudo levou à criação de um índice que permite identificar o surgimento de uma nova onda da doença a partir de sintomas relatados por pacientes das Unidades de Pronto Atendimento (UPA) da Capital. O trabalho, que envolveu pesquisadores da UFC, da Universidade de Fortaleza (Unifor) e de Harvard, fornece uma alternativa para driblar cenários de subnotificação, em que os registros oficiais não correspondem à real situação da doença.
“Naquele momento (da chegada da Covid-19) já ficou claro que você não poderia trabalhar exclusivamente com o presente, com o dia a dia, ‘hoje está assim’. Você tinha que ter uma capacidade maior de, através de modelos matemáticos mais robustos, conseguir algum nível de previsibilidade. ‘Hoje está assim, daqui a uma semana estará como, se tudo permanecer como está nos últimos cinco dias?’”, explicou o secretário-executivo de Vigilância em Saúde do Ceará, o médico epidemiologista Antonio Silva Lima Neto, conhecido como Tanta.
Quando não havia dados anteriores sobre o comportamento da pandemia, realizar projeções sobre o cenário que viria pela frente foi importante para a gestão dos insumos. Era preciso ter alguma base para programar o número de respiradores e de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) que seriam necessários, assim como a quantidade de oxigênio, por exemplo.
“Hoje em dia temos uma série histórica que nos permite olhar para trás e projetar para frente, mas naquele momento era tudo muito rápido e muito dinâmico. Então, o que acontecia nessa semana já tinha que projetar para daqui a 15 dias”, contextualiza a professora Magda Almeida, do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da UFC, que à época era secretária-executiva de Vigilância e Regulação da Secretaria da Saúde do Estado (Sesa).
Saúde, Big Data e Comunicação
Coleta e análise de dados já fazem parte do cotidiano de epidemiologistas. Porém, quando se junta computadores de alta performance, disponibilidade de dados de alto nível em grande quantidade e inteligência artificial, atinge-se outro patamar. “Estamos em um ponto de virada que considero muito interessante. Quando junta tudo isso, tem uma capacidade analítica muito forte, se utilizar bem as técnicas disponíveis”, afirma o professor José Soares, cientista-chefe de Dados da Saúde do Ceará.
A chegada da Covid-19 exigiu algumas mudanças, conforme relata a professora Magda Almeida. Se antes os bancos de dados eram “completamente setorizados”, por exemplo, foi preciso reuni-los e tornar as informações mais transparentes tanto para outros gestores quanto para a população.
“Um grande avanço foi promover a integração de dados, juntar dados epidemiológicos de diferentes municípios, dados de internação, dados hospitalares, para gerar um cenário em que a gente pudesse projetar melhoras ou pioras”, conta a ex-secretária. Para isso, foi necessário trabalhar a transparência dessas informações, o que levou inclusive a uma melhoria dos registros.
Ficou bem clara a necessidade — e não é uma coisa futura, é de agora — de entender que precisamos tomar as decisões baseadas em dados. Acho que esse amadurecimento da gestão durante a pandemia é uma coisa que se mantém, é um ganho. Inclusive os órgãos de controle, hoje em dia, cobram do serviço público (a transparência e a tomada de decisão baseada em dados), porque viram que era possível ser feito.
De posse de todas essas informações, o desafio seguinte foi comunicá-las, traduzir a linguagem técnica e os gráficos para a população entender o cenário do Estado em meio à emergência sanitária. “Acompanhamos o amadurecimento da imprensa na interpretação dos dados de mortalidade, de infecção. Fomos trabalhando juntos a qualificação desses dados, acho que isso ajudou bastante. Traduzir o conhecimento científico para o público aumenta a segurança e a confiança do cidadão no serviço público”, conta ela.
Tanta também destaca a importância da divulgação dos dados sobre a Covid-19, com ferramentas como o IntegraSUS, que atualmente reúne indicadores de vigilância em saúde, rede assistencial, saúde mental e dados administrativos, entre outros. O gestor também lembra que semanalmente eram realizadas reuniões e as decisões eram informadas à população em transmissões ao vivo.
“Essa questão da transparência foi um gol de placa, você tanto deixar os dados disponíveis quanto apresentar, de maneira muito clara, as projeções para a sociedade civil não se posicionar contra ou a favor de qualquer medidas do governo sem ter acesso aos dados oficiais, às análises oficiais. Acho que foi uma política muito boa”, avalia o secretário-executivo.
Equipe multidisciplinar
Para todo esse trabalho, é importante contar com uma equipe multidisciplinar, unindo capacidades de profissionais de diferentes áreas do conhecimento. Para o professor Vasco Furtado, coordenador do Laboratório de Ciência de Dados e Inteligência Artificial da Unifor, a proximidade entre cientistas e autoridades estaduais foi “fundamental” para a forma como o Estado gerenciou a pandemia, “olhando para os dados, com todas as dificuldades daquele momento, mas com o devido rigor científico”.
Hoje secretário-executivo de Vigilância em Saúde do Ceará, o epidemiologista Antonio Silva Lima Neto estava à frente da Célula de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza no começo de 2020 e fez parte do Comitê Estadual de Enfrentamento à Pandemia do Coronavírus. O grupo foi criado no dia 13 de março daquele ano e uma equipe liderada pelo professor José Soares foi convidada para integrá-lo.
O número, frio, pode não fazer sentido. Precisa ter especialistas que conheçam os temas variados para que possa dar concretude àquele número, que ele signifique alguma coisa em termos de saúde pública.
Semanalmente, físicos, matemáticos e cientistas de dados passaram a apresentar predições para o futuro cenário epidemiológico da pandemia no Ceará. “Evidentemente, você vai engatinhando no início, mas o modelo vai se adequando à realidade”, pontua o secretário.
No início, quando havia poucos testes e eles eram destinados aos pacientes em estado mais grave, não era possível tomar como base os números de casos para calcular a letalidade da doença por causa da subnotificação, por exemplo. Dessa forma, era necessário estimar a propagação da Covid-19 a partir da quantidade de mortes causadas pela doença.
Foi altamente desafiador, do ponto de vista epidemiológico, matemático e computacional. Eu estava trabalhando com o professor Humberto Carmona, que, juntamente comigo, analisava os dados, fazia a parte computacional. E, juntos, também produzimos apresentações para o Comitê.
Além da evolução temporal da contaminação e de sua distribuição geográfica, o professor José Soares pontua que a equipe estava constantemente tentando caracterizar o índice de propagação da doença, a partir do fator de reprodução do vírus. Representado pela variável “R”, esse indicador mostra, em média, quantas pessoas cada paciente infectado pode contagiar em determinado momento.
Todos indicadores eram discutidos em conjunto pelos integrantes do Comitê e apresentados ao então governador e atual ministro da Educação, Camilo Santana (PT). A pluralidade do grupo foi um aspecto destacado por Soares, com ênfase para a presença de representantes do poder judiciário.
“Era muito importante que a gente tivesse o apoio da lei. Tudo isso foi feito nesse Comitê no âmbito legal e científico, é uma combinação que não tem precedente. E levando em conta as instituições, o comércio e todas as outras organizações importantes da sociedade”, afirma.
Lockdown em Fortaleza
Também foi um estudo da equipe liderada por Soares que embasou a adoção do lockdown em Fortaleza, no dia 8 de maio de 2020. Foi a partir da pesquisa publicada na revista científica PLOS Computational Biology em abril de 2022 que se percebeu uma mobilidade dentro dos bairros não identificada nas grandes vias da cidade, dando continuidade à transmissão da Covid-19 mesmo com regras de isolamento social.
“Você percorria as grandes avenidas — a Sargento Hermínio, a Bezerra de Menezes, Leste Oeste — você não via carro, mas dentro dos bairros havia uma grande mobilidade, muitas vezes ainda sem o EPI (equipamento de proteção individual) principal, que era a máscara. Estávamos em uma situação limite. E com essa decisão, que eu acho que foi muito acertada, logo percebemos a queda da transmissão”, explica Tanta.
Um dos autores do estudo, o físico Saulo Reis, professor e pesquisador do Departamento de Física da UFC, explica que o objetivo era identificar rapidamente pessoas expostas ao vírus. Para isso, eles utilizaram dados anonimizados de GPS de celulares e aplicaram a Teoria de Redes, que analisa as interações entre os diversos atores envolvidos em uma situação — nesse caso, as pessoas da Capital.
“Pudemos identificar quem teve maior risco de contato com pessoas infectadas, destacando pontos críticos onde a transmissão era mais intensa e indicando como intervenções estratégicas poderiam ser feitas para frear a pandemia”, explica o coordenador do curso de Bacharelado em Física da UFC.
A ideia era encontrar os “superdisseminadores” — pessoas que não só tinham um grande número de contatos como ocupavam uma “posição estratégica na rede”. Eles atuavam como uma ponte entre diferentes grupos “altamente conectados”, como era o caso de profissionais de saúde, entregadores e funcionários de grandes centrais de distribuição.
“As pontes entres esses grupos, como profissionais de saúde que trabalhavam em diferentes hospitais, foram instrumento de continuidade de transmissão”, explica. A partir desses achados, a equipe propôs uma estratégia para isolar essas pontes e cortar a transmissão. Parte dos resultados continuou sendo utilizada pela Sesa ao longo de dois anos para orientar as decisões sobre a pandemia.
Para além da Covid-19, Saulo Reis aponta que essa metodologia pode ser adaptada para outros cenários de emergência. “O método combina técnicas de big data, machine learning e física estatística, podendo ser aplicado rapidamente para entender como qualquer doença contagiosa pode se espalhar, ajudando a definir estratégias eficientes para interrupção da transmissão em diferentes contextos”, afirma.
Antecipando cenários
Se no início da pandemia os casos de Covid-19 eram subnotificados porque havia poucos testes, à medida que a vacina passou a ser aplicada no País e a população passou a apresentar sintomas mais leves, a subnotificação ocorreu devido à redução da procura pela testagem. Porém, ainda era necessário monitorar a quantidade de pacientes acometidos e a gravidade das novas ondas da doença.
A partir dessa problemática, um grupo de pesquisadores criou um indicador para classificar casos suspeitos de Covid-19 a partir dos sintomas relatados pelos pacientes que buscavam as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) de Fortaleza.
Essas informações chegavam em formato de texto livre — e não em forma de tabela, como é necessário para realizar a análise direta. Por isso, foi utilizada a técnica de mineração de texto, que aplica algoritmos computacionais para identificar padrões e extrair dados relevantes — neste estudo, os sintomas dos pacientes. Se o relato fosse compatível com o diagnóstico de Covid-19, o caso era considerado suspeito para a doença.
“Com os dados das UPAS, nós fizemos uma série temporal de suspeitos. A gente tinha, por dia, quantos pacientes tinham sintomas necessários para caracterizar como possível (caso de) Covid-19 e comparou com a série temporal de (casos) realmente confirmados nas ondas passadas”, explica Erik Solha, mestre em Ciência de Dados pelo Programa de Pós-graduação em Informática Aplicada da Unifor.
Comparando as duas séries temporais por meio de métodos estatísticos, a equipe percebeu que era possível identificar a chegada de uma onda de Covid-19 com cerca de uma ou duas semanas de antecedência a partir dos casos classificados como suspeitos.
“Em teoria, a gente saberia que vai ter uma onda 15 dias antes de ela de fato aparecer nos casos confirmados”, acrescenta o físico e professor da Unifor Erneson Oliveira, que também assina a pesquisa. “A ideia é que, se tiver um novo surto de doença, a gente saiba que ele está acontecendo antes de virem os casos de fato, porque é como se tivesse uma pessoa na porta da UPA vendo os sintomas do pessoal, só que tudo isso de forma eletrônica”, complementa.
O artigo analisou dados do período de janeiro de 2020 a maio de 2022 e foi publicado na revista científica BMC Infectious Diseases em março de 2024. A pesquisa resultou em um modelo que pode ser rodado diariamente e foi cedido para a gestão estadual. “A qualquer momento que sentirem necessidade, eles podem rodar esse modelo e obter a série temporal desses (casos) suspeitos, vendo se tem alguma anomalia, se a onda está subindo ou se estamos saindo de alguma onda”, afirma Solha.
Fortalecimento da ciência e Saúde Digital como legados
Também em relação à tecnologia, a pandemia de Covid-19 também marcou o avanço e a consolidação da Saúde Digital. O médico Odorico Monteiro, coordenador da área de Inovação e Empreendedorismo na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), destaca a aprovação de leis que permitiram o uso da telemedicina, com consultas e o diagnóstico por meio das plataformas digitais.
“Isso era muito travado no Congresso. Nós fizemos um avanço no marco legal, enfrentando muitas vezes uma certa resistência da própria população médica, mas isso foi um avanço importante”, afirma.
Essa migração de diversos serviços para o digital, necessária devido ao isolamento social, também é citada pela secretária adjunta da Saúde da Prefeitura de Fortaleza, Aline Gouveia, tanto para a realização de consultas quanto para o treinamento dos profissionais e para a comunicação com a população.
“A Prefeitura tem um aplicativo, que é uma ferramenta importante tanto para o usuário, que tem a carteira de vacinação, as consultas que ele passou na rede pública, como para a Secretaria”, exemplifica. Além disso, ela destaca que a telemedicina e a teleconsulta têm sido aspectos fortalecidos pela gestão por meio Escola de Saúde Pública de Fortaleza (Espfor).
Monteiro também destaca uma série de outros estudos que foram desenvolvidos para entender a pandemia, como o monitoramento da rede de esgoto para detectar a presença do vírus, permitindo a identificação de tendências e a antecipação de decisões. “Isso fica como um legado que na hora que você tiver alguma epidemia, você possa usar essa tecnologia”, diz o médico.
A possibilidade de cada vez mais aproximar academia e poder público foi um aspecto que “ficou claro” com a experiência da pandemia e tem sido “uma fórmula de muito sucesso” no Estado, por meio do programa Cientista-Chefe, da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), segundo o professor Vasco Furtado. “Os pesquisadores têm aderido a esse programa nas diversas áreas, não só saúde, e isso faz com que a gente tenha ganhos científicos e resultados práticos para a população”, afirma.
Transparência dos indicadores de saúde no pós-pandemia
No início da pandemia de Covid-19, diversas entidades da sociedade civil organizada mobilizaram-se para cobrar transparência das informações sobre o contágio e a infraestrutura da rede de saúde para lidar com a crise. Uma dessas iniciativas foi o Índice de Transparência da Covid-19 (ITC-19), proposto pela Open Knowledge Brasil (OKBR), que estabelecia padrões mínimos de transparência para estados e municípios.
O ITC-19 teve início em abril de 2020 e foi encerrado em outubro de 2021. Ao longo desse período, o nível de transparência do Ceará foi classificado como “bom” em três avaliações e como “alto” em outras 18 análises. Em quatro dessas situações, o Estado ficou em 1º lugar no ranking, entre as 27 unidades federativas.
O então secretário de saúde do Ceará, Carlos Roberto Martins Rodrigues Sobrinho, dr. Cabeto, concedeu entrevista concedida à na última sexta-feira (14) e afirmou que a transparência confere credibilidade à gestão pública, apesar de também gerar críticas. “Mas é importante. Em uma democracia, é fundamental”, afirmou.
Na entrevista, ele fez críticas a como esse aspecto tem sido trabalhado, ao afirmar que “o IntegraSUS está praticamente apagado”. Atualmente, por exemplo, o painel da plataforma que apresenta os dados de Covid-19 não exibe mais os números de óbitos causados pela doença ao longo da pandemia.
Questionada pelo , a Sesa informou, por meio da assessoria de imprensa, que “o painel do IntegraSUS referente a covid-19 retrata o atual contexto epidemiológico do estado com relação aos níveis de infecção do vírus”. Em nota, a Pasta ressaltou que utiliza outros instrumentos de transparência com dados sobre a Covid-19, como boletins e informes periódicos disponibilizados no site da Secretaria.
“A transparência de dados e informações relevantes para a saúde pública é um compromisso que faz parte das ações diárias da Sesa. É importante ressaltar que, como todo e qualquer painel de dados, o IntegraSUS passa por atualizações periódicas para aperfeiçoar a acurácia e a funcionalidade das informações e ferramentas de consulta disponíveis, sempre com o foco na segurança e qualidade dos dados disponíveis”, finalizou.