O ex-ministro da Fazenda, Antonio Delfim Netto, morreu ontem, aos 96 anos, encerrando a longa trajetória de um dos personagens mais marcantes dos cenários político e econômico do Brasil desde meados do século passado. Ele estava internado desde a última segunda-feira no Hospital Israelita Albert Einstein em decorrência de complicações no seu quadro de saúde.
As notas de pesar da direita à esquerda, nos mais diferentes setores políticos e econômicos, sugere a forte influência que o economista teve no país. A revisão de sua vida pública ajuda a explicar como ele conseguiu tal façanha.
“Nós não temos competência para acabar com o Brasil. O Brasil vai sobreviver a todas as bobagens que nós fizermos e vai sair melhor do que começou.”
Era assim, sem dispensar o humor refinado, uma marca pessoal, que o economista e ex-ministro Antônio Delfim Netto olhava as perspectivas para o Brasil no fim de 2015, em meio ao aprofundamento da crise econômica e aos sinais já bastante claros do turbilhão político, que meses depois levaria ao impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Bem antes, foi sob seu comando na economia que o país viveria um ciclo de forte expansão da economia, que ficaria conhecido como “milagre econômico”. Delfim esteve à frente da Fazenda entre 1967 e 1974, durante as presidências dos generais Costa e Silva e Médici, na ditadura militar.
Foi nessa época que o Produto Interno Bruto (PIB) deu um salto e chegou a crescer 14% ao ano — mas em uma expansão fortemente concentradora de renda e calcada em desequilíbrios que levariam o país a crises anos depois.
Mais Sobre Delfim Netto
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Acadêmico destacado
Formado pela Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade de São Paulo (FEA-USP), Delfim Netto fez doutorado com uma tese sobre a economia do café, tornando-se catedrático de Economia Brasileira na mesma escola em 1958.
Ainda estudante, trabalhou no Departamento de Estradas de Rodagens do governo paulista. Entre junho de 1966 e janeiro de 1967, foi secretário de Fazenda no governo de transição de Laudo Natel, que substituiu o titular, Adhemar de Barros, cassado na ditadura.
Apoio ao AI-5
Em seguida, integrou o grupo de Planejamento do governo Carvalho Pinto. No mesmo ano, aos 39 anos, se tornaria ministro da Fazenda a convite do marechal Arthur da Costa e Silva, posto em que permaneceria ainda durante a presidência do general Emílio Garrastazu Médici. Foi o mais jovem a assumir o cargo.
Foi a época das grandes obras. Com financiamento externo e sob um regime de exceção, os governos militares construíram a Ponte Rio-Niterói, a Transamazônica, a Usina Hidrelétrica de Itaipu e a Refinaria de Paulínia, entre outros.
Mas as políticas desenvolvimentistas da década de 1970 legaram ao país sérios problemas de desequilíbrio externo, o que acabou levando à hiperinflação que marcou o início da redemocratização.
Em 13 de dezembro de 1968, Delfim Netto participaria no Palácio das Laranjeiras, no Rio, da reunião do Conselho de Segurança Nacional, convocada por Costa e Silva, na qual seria aprovado o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que suprimiu os direitos constitucionais e ampliou a repressão.
De acordo com o livro “A ditadura envergonhada”, do jornalista Elio Gaspari (leia artigo do autor na página 14), naquela reunião o jovem ministro da Fazenda, então com 40 anos, “pisou no acelerador”.
“Queria que a concentração de poderes pedida por Costa e Silva desse ao governo mão livre para legislar sobre matéria econômica e tributária”, descreve Gaspari. Depois de afirmar aos presentes que estava “plenamente de acordo” com a proposição que estava em análise, ele acrescentaria, dirigindo-se a Costa e Silva:
“Eu acredito que deveríamos atentar e deveríamos dar a Vossa Excelência a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez.”
Autonomia em relação aos militares
Em entrevista ao GLOBO em março de 2014, pouco antes de completar 86 anos, Delfim foi veemente ao negar interferência dos militares na gestão econômica. Também rebateu a ideia de que sua gestão foi facilitada pelo regime de força. Segundo ele, tudo o que foi feito caberia em um período de democracia plena.
Sobre as alegações de adversários de que aquele salto fora forjado à custa de um arrocho salarial, endividamento externo e manipulação de preços, rebateu:
— Todos melhoraram, mas alguns melhoraram mais que outros. Quem eram esses que melhoraram mais? Exatamente aqueles que tinham sido privilegiados com educação superior e cuja demanda cresceu enormemente no processo de desenvolvimento.
Sob a presidência de Médici e a batuta de Delfim, o PIB teve taxas de expansão entre 9% e 14% ao ano, período que ficou conhecido como o milagre econômico. Houve avanços na infraestrutura do país, e o emprego aumentou, puxado pelos investimentos estatais em obras e na indústria.
De volta a Brasília com Figueiredo
Depois de servir como embaixador do Brasil em Paris no governo do general Ernesto Geisel, Delfim voltaria ao primeiro escalão do Executivo na administração de João Baptista Figueiredo (1979 a 1985), inicialmente à frente do Ministério da Agricultura (de março a agosto de 1979).
Com o pedido de demissão de Mario Henrique Simonsen (que fora seu sucessor na Fazenda, com Geisel), assumiu a pasta do Planejamento, onde ficou até março de 1985, enfrentando as sucessivas turbulências causadas pelo elevado endividamento externo do país, em meio a crises como a do petróleo (a segunda, em 1979) e a da alta dos juros nos EUA.
Em 1983, Delfim tornara-se professor titular de análise macroeconômica na USP, onde ganharia o título de professor emérito. Dois anos depois, elegeu-se deputado federal pelo PDS e participou da Assembleia Nacional Constituinte, instalada em 1º de fevereiro de 1987, importante passo da redemocratização do país. Foi reeleito para cinco mandatos seguidos.
Trajetória política à direita
Ao longo da carreira, o economista transitou por partidos de direita como o PPR e o PPB, até que em 2005 filiou-se ao PMDB. Mas, em 2006, não conseguiu se reeleger pela sigla. Voltou a atuar em seu escritório de consultoria econômica, no bairro paulista do Pacaembu, e à vida acadêmica.
Em 2014, Delfim doou para USP sua biblioteca pessoal, com mais de 100 mil títulos, acumulados em quase oito décadas — o que a tornou uma das mais relevantes do país. Tem mais de dez livros publicados sobre problemas da economia brasileira e centenas de artigos e estudos, e foi colunista em diferentes veículos, como a revista Carta Capital e os jornais Folha de S.Paulo e Valor Econômico.
É autor de uma série de livros, como “O problema do café no Brasil”, escrito ainda nos anos 1960, “O Brasil e a ciência econômica, volumes I e II”, “Planejamento e desenvolvimento econômico” e “O Brasil do século XXI”.
Conselheiro de Lula e Dilma
Durante o governo do PT, Delfim foi conselheiro frequente de Luiz Inácio Lula da Silva em seus dois mandatos. Manteria essa condição até pouco antes do naufrágio da gestão da sucessora de Lula, Dilma Rousseff.
Em nota, o presidente Lula lamentou a morte do economista, afirmando que ele foi “um dos maiores defensores do que fizemos em políticas de desenvolvimento e inclusão social.” O presidente lembrou que criticou o economista por 30 anos, mas pediu desculpas públicas a Delfim em 2006, durante sua campanha pela reeleição:
“Delfim participou muito da elaboração das políticas econômicas daquele período. Quando o adversário político é inteligente, nos faz trabalhar para sermos mais inteligentes e competentes”, escreveu.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, lamentou a morte do economista numa nota breve na rede social X: “Merece respeito por ter se dedicado ao progresso econômico brasileiro.”
Delfim morreu ontem, aos 96 anos. Estava internado desde a última segunda-feira no Hospital Albert Einstein. Deixa uma filha e um neto.