Clarissa Presotti — especialista em políticas públicas do WWF-Brasil; Ana Carolina Crisostomo — especialista em Conservação do WWF-Brasil
O Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei 2.159/202, o PL da Devastação, um texto que desmantela o sistema de licenciamento ambiental do país. Essa decisão ameaça a rica biodiversidade brasileira e pilares fundamentais para o desenvolvimento e a segurança nacional: a estabilidade energética, hídrica e alimentar, e a competitividade de nossas commodities agropecuárias.
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O crescimento do Brasil sempre esteve ligado às suas riquezas naturais. A sustentabilidade desse desenvolvimento, contudo, depende crucialmente dos serviços ecossistêmicos prestados pelas áreas naturais ainda intactas. São serviços como a regulação do ciclo da água, a manutenção da qualidade do solo e a polinização que garantem a perenidade de nossos recursos e a produtividade de setores vitais, como o agronegócio.
O PL da Devastação ataca essa premissa ao flexibilizar normas e pulverizar o controle ambiental. O autolicenciamento, por exemplo, permite que empreendedores atestem os impactos ambientais de suas atividades, substituindo a análise técnica rigorosa por uma autoavaliação sem isenção. Isso abre as portas para o desmatamento, a poluição e a degradação em larga escala, sem fiscalização.
Em um momento em que biomas críticos como a Amazônia e o Cerrado se aproximam de pontos de não retorno, a aprovação desse PL é preocupante. O Cerrado, berço de oito das 12 principais bacias hidrográficas do país, é essencial para a segurança hídrica e energética do país. A flexibilização das normas ambientais nesse bioma pode ter consequências catastróficas para o abastecimento de água e a geração de energia. Há dados que mostram uma redução de aproximadamente 30% na vazão de importantes rios do bioma, resultado da combinação do uso irracional das águas, desmatamento e mudança do clima.
A proposta dispensa o licenciamento para atividades agropecuárias, colocando em risco a sustentabilidade do agronegócio brasileiro. A degradação ambiental e a contaminação dos recursos hídricos podem comprometer a qualidade e a competitividade de nossas commodities no mercado internacional. A Licença Ambiental Especial, baseada apenas em decisões políticas e que simplifica o licenciamento para grandes obras de infraestrutura, como a exploração de petróleo e gás na Margem Equatorial e o asfaltamento de rodovias na Amazônia, ignora a extrema sensibilidade ambiental dessas áreas e acelera a destruição de ecossistemas vitais. Estimativas apontam que uma área do tamanho do estado do Paraná pode ser desmatada na Amazônia como resultado da simplificação do licenciamento para grandes obras de infraestrutura.
O PL da Devastação não apenas fragiliza a proteção ambiental, mas também gera insegurança jurídica. Diversos parágrafos do texto já foram julgados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF), evidenciando a fragilidade legal da proposta e a probabilidade de aumento da judicialização. A fragmentação das normas entre estados e municípios, em vez de simplificar o licenciamento, tende a criar um emaranhado burocrático e a diminuir a transparência. O projeto também ignora direitos de povos indígenas e tradicionais, em clara violação da Constituição brasileira.
Em pleno ano da COP30, a aprovação desse PL envia uma mensagem contraditória à comunidade internacional. Ela ameaça a liderança do Brasil nas negociações climáticas globais e pode comprometer parcerias comerciais e o acesso a financiamentos que dependem de salvaguardas socioambientais. O Brasil, que tem o potencial de ser um líder na transição para uma economia verde, corre o risco de se isolar e perder oportunidades valiosas.
Diante desse cenário, cabe ao presidente da República exercer sua responsabilidade e vetar integralmente o texto do PL da Devastação. Ainda é possível evitar uma tragédia sem precedentes e reafirmar o compromisso do Brasil com a proteção de seu patrimônio natural, a segurança de seu povo e a construção de um futuro mais próspero e sustentável. O Congresso, por sua vez, deveria se empenhar em construir melhores formas de conciliar a preservação ambiental com o desenvolvimento, por meio de um diálogo construtivo e baseado em evidências científicas.
Por Opinião