Pacote do gás tenta resolver preço alto do produto com medidas de intervenção que vão da extração até o consumidor

Em busca de solução para o preço do gás natural no Brasil, um problema apontado como crônico por diferentes governos e pela indústria, a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva lançou ontem uma série de medidas que se aproximam de interferência direta no setor. As ações impactam diretamente atividades que vão dos campos de exploração até a venda direta do produto.

Além disso, o Executivo decidiu ampliar e reformular o programa de “vale-gás”, voltado para subsidiar o GLP a famílias de baixa renda, a partir do ano que vem.

As medidas foram assinadas por Lula em reunião do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) — órgão encabeçado pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira. Indústrias consumidoras do produto comemoraram, antevendo um aumento da oferta do insumo, o que significaria preço menor.

Críticos, no entanto, afirmam que as medidas podem ser questionadas como intervenção no mercado, sobretudo caso interfiram em contratos já vigentes. O tema afeta não só a Petrobras, mas também grandes multinacionais que atuam no segmento no Brasil, como Shell, BP, Galp e Equinor.

Um dos decretos amplia os poderes da Agência Nacional do Petróleo (ANP) sobre o setor. Permite regular as tarifas de escoamento e tratamento de gás, que hoje são negociadas entre empresas. O escoamento e processamento ocorrem do campo à costa. Depois que o gás é tratado, há etapas de transporte e distribuição.

A agência terá poder para determinar a redução da reinjeção de gás nos poços para os novos projetos e estimular que nos antigos, com contrato assinado, as petroleiras topem aderir à medida. Na reinjeção, o gás extraído dos campos de petróleo é injetado novamente nos poços.

Isso é feito, por exemplo, para melhorar a extração de petróleo, por falta de infraestrutura e alto teor de carbono. O governo vê no processo um desperdício de gás, que poderia ser aproveitado.

A ANP poderá determinar o aumento da produção de gás natural e a ampliação das infraestruturas de escoamento e tratamento do produto.

Em outra frente, Lula assinou resolução que permite usar a estatal Pré-Sal Petróleo (PPSA) como um braço para comercializar gás natural. A PPSA poderá comercializar gás natural, gás de cozinha (GLP) e líquidos derivados do processamento do gás. Assim, poderá concorrer diretamente com a Petrobras na comercialização do gás ao mercado. A ideia é ajudar a baixar o preço.

Redução de ao menos 35%

A PPSA é a estatal que gerencia os contratos de produção no pré-sal. É ela que fica com o óleo e o gás que cabe à União nas reservas de pré-sal. A partir da resolução, ela poderá acessar os sistemas de processamento e o escoamento do gás produzido nos campos, que são localizados no mar, e comercializá-lo.

Hoje, a empresa não tem autorização para vender gás natural após as unidades de processamento, conhecidas no setor como UGPN, e é obrigada a vender a fatia do gás que cabe à União na plataforma.

— Estamos equilibrando o mercado nacional do gás, oferecendo aumento da disponibilidade e moderação nos preços ao consumidor final. O governo federal e o povo brasileiro serão beneficiados com a implantação dessa política — disse Silveira.

Diferentes segmentos da indústria consumidora de gás, que estiveram na plateia, apoiaram a iniciativa, com a perspectiva de que possam ter acesso ao gás a preços mais baixos. O governo fala em reduzir de 35% a 40% o preço do gás.

— É mais racional usar a PPSA do que a Petrobras. Hoje o preço de mercado é definido só pela Petrobras. É um embrião de um mercado com leilões a longo prazo de gás — disse Paulo Pedrosa, presidente da Abrace, associação de grandes consumidores de energia.

O presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), André Passos Cordeiro, estima uma redução de até 50% no preço. O segmento é o maior consumidor do produto.

—Não é possível ter uma diferença de 400% em relação aos preços de referência internacionais — diz Passos Cordeiro, que acredita que o custo do gás natural no país, que gira em torno de US$ 10 a US$ 12 o milhão de BTUs atualmente, pode cair para US$ 6 a US$ 7.

Um segundo decreto fecha as portas para a possibilidade de privatização no setor de refino, o que já não estava em curso no governo Lula. E um projeto de lei permite a transferência de excedentes dos índices de conteúdo local entre contratos vigentes de exploração e produção: se em um contrato uma petroleira obtém índice de conteúdo nacional na compra de equipamentos superior ao necessário, pode transferir o excedente a outro contrato de exploração.

Por exemplo: se o contrato prevê 35% de conteúdo local e a empresa teve 40%, poderia levar a parcela adicional a outra operação na qual esteja abaixo do mínimo.

Karina Santos, advogada da área de Sustentabilidade Corporativa do Gaia Silva Gaede Advogados, lembra que a Petrobras é uma empresa de economia mista, em que a maioria das ações pertence à União, mas também tem dinheiro privado, com ações na Bolsa. As decisões passam por níveis de governança. No caso da PPSA, 100% de seu capital é público.

— Via PPSA, o governo vai atuar de maneira mais direta no mercado de gás. Ou seja, haverá maior interferência governamental em relação às atividades de escoamento e tratamento do gás — avalia, acrescentando que considera a ação uma interferência do governo no mercado. — Foi o que aconteceu com a MP 579 no setor elétrico. O governo manipulou as regras para baixar momentaneamente o valor da energia. E estamos vendo isso no gás. Ou seja, o gás pode ser barateado no primeiro momento, mas vamos pagar a conta mais tarde.

Para Rodrigo Figueiredo, especializado em Direito do Estado e sócio do escritório RVF Advogados, o pacote do governo muda a gestão estratégica do escoamento e produção do gás natural no país, ao incluir a PPSA em áreas dominadas pela Petrobras:

— Isso pode trazer uma vantagem ao consumidor, instaurando certa concorrência, tendendo a baratear os preços. Mas há uma diferença qualitativa entre a ingerência que PPSA e Petrobras podem sofrer a partir do controlador.

Em outra frente, o pacote permite ampliar o vale-gás com recursos do Fundo Social do Pré-Sal. O aumento do número de beneficiários ocorrerá a partir do ano que vem e chegará ao auge em 2026.

R$ 2 tri na economia verde

Durante a reunião do CNPE ontem, foi aprovada a criação da Política Nacional de Transição Energética. O Ministério de Minas e Energia diz que o o país pode receber cerca de R$ 2 trilhões em investimentos verdes em dez anos.

O secretário de Transição Energética, Thiago Barral, explicou que a iniciativa inclui um fórum permanente entre atores públicos e privados para tomada de decisões e um plano vinculado a outras áreas do governo.

— Esse país já jogou fora muitas oportunidades. A gente não pode jogar oportunidades fora. Temos tudo o que a natureza nos ofereceu. Temos mão de obra qualificada, gente capacitada tecnicamente. No setor energético, a gente tem centenas de excelências nesse país. A gente pode fazer o que quiser — disse Lula.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *