Diversos carros e guardas da GCM (Guarda Civil Municipal) fazendo batidas em algumas das vias mais movimentadas de São Paulo na última semana se tornaram a faceta mais visível de uma disputa acirrada sobre mototáxis entre a Prefeitura de São de Paulo e os principais aplicativos de transporte do país, Uber e 99.
A Uber e a 99 começaram a oferecer o transporte de passageiros por motocicleta em São Paulo na segunda (21/1), ignorando um decreto da Prefeitura da cidade de 2023 que proíbe o serviço.
A briga de trânsito foi rapidamente parar na Justiça.
A prefeitura tentou cobrar uma multa das empresas, mas foi barrada por uma decisão liminar (temporária). Passou então a fazer blitzes, a multar os motociclistas e chegou a apreender 276 motos.
“É uma guerra de gigantes onde só o trabalhador paga o preço”, diz o motociclista Jr. Freitas, que tem atuado na mobilização com colegas para protestar contra a proibição. “Uma multa de R$ 7 mil reais para o trabalhador é um absurdo”, diz ele.
Alguns motoristas conseguiram liminares para continuar trabalhando sem serem multados — a 99 ofereceu orientação jurídica para alguns que quiseram entrar com ações.
Mas a última decisão sobre o tema, na segunda (27/1), determinou que os aplicativos suspendessem o serviço, o que foi feito na terça (28/1).
As empresas afirmaram que, embora tenham acatado a decisão, vão recorrer.
Na Justiça, o que está em disputa é a validade do decreto municipal de proibição. Os aplicativos contestam a legislação com base em uma Lei Federal que permite o serviço.
Na última decisão, o juiz Eduardo Gouvêa, do Tribunal de Justiça de SP, entendeu que, embora a validade do decreto esteja sendo contestada em ações, ele continua valendo enquanto as ações não tiverem uma resolução.
Mas afinal, o que está em jogo nessa disputa além dos interesses das empresas?
Aplicativos disponibilizaram o serviço em meados de janeiro
Risco inerente
O principal argumento da prefeitura de São Paulo para a proibição é o alto risco de acidentes e mortes para passageiros, motoristas e até pedestres.
“A Prefeitura se baseou em dados concretos sobre o aumento de sinistros, mortes e lesões com o uso de motocicletas na cidade”, disse a prefeitura à BBC News Brasil.
O aumento não está diretamente ligado ao mototáxi — o número de mortes relacionadas a acidentes de moto aumentou 20% entre 2023 e 2024, segundo o Infosiga (sistema estadual de monitoramento da letalidade no trânsito) antes do estabelecimento do serviço — mas a perspectiva, segundo a prefeitura, é que o mototáxi aumente a frota, o número de passageiros e os acidentes.
“O crescimento de sinistros e mortes é proporcional ao da frota”, disse a prefeitura em uma nota publicada no dia em que os aplicativos iniciaram o serviço.
Quase metade (43%) das mortes no trânsito no Estado de São Paulo em 2024 foram de motociclistas ou pessoas na garupa — isso sem incluir as mortes de pedestres, ciclistas e pessoas em carro em acidentes envolvendo motos.
As empresas afirmam que tomaram uma série de medidas para ampliar a segurança, como monitorar a velocidade, fazer treinamentos e exigir equipamentos de segurança, entre outras (leia mais abaixo).
Para os motociclistas, usar o argumento do risco de acidentes para proibir o serviço é uma forma de não se responsabilizar pela segurança que ela mesma deveria garantir.
“Se a prefeitura está preocupada com a segurança, por que então não melhora a infraestrutura? A implementação da Faixa Azul (para circulação de motos) é uma coisa boa, mas está muito lenta. Por que a prefeitura não melhora o asfalto, que está todo esburacado e causa acidentes?”, afirma Freitas.
O motociclista afirma que o papel da cidade deveria ser regulamentar o serviço para garantir que as empresas ofereçam melhores condições para os motoristas.
“O trabalhador não é contra a regulamentação, se não for criar um monte de burocracia. Tem que ter regras para seguir. Mas o prefeito simplesmente proibiu, se fechou para o diálogo”, afirma.
Não existem estudos conclusivos que determinem exatamente o quanto da letalidade é devido a um risco inerente da modalidade e o quanto é resultado de falta de regulação no trânsito e falta de ação do poder público.
Em geral, os especialistas afirmam que é uma mistura dos dois.
Aplicativos afirmam que criaram medidas de segurança
Embora medidas mitigadoras sejam necessárias e muito bem-vindas, a motocicleta é realmente um veículo mais perigoso por natureza, explicam especialistas em segurança no trânsito.
“A motocicleta tem um risco inerente altíssimo”, afirma o urbanista Diogo Dias Lemos, coordenador Executivo da Iniciativa Bloomberg para Segurança Viária Global. “Ela coloca o corpo humano a velocidades altíssimas, em conflito com veículos e objetos pesadíssimos, quando a proteção dessas pessoas é o próprio corpo, que funciona como lataria (de um carro) e airbag.”
Aliada à falta de proteção de uma lataria, explica Lemos, as motos são perigosas por causa da alta velocidade que permitem o motorista atingir.
“Em uma moto, a 60 km/h, a chance de sobrevivência do ser humano em caso de colisão é de 2%. Não estou falando de 100 km/h, 120 km/h, mas de uma velocidade padrão da cidade”, diz Lemos.
Esse é um dos fatores que diferencia a moto de uma bicicleta (que também não tem uma carroceria para prteger o condutor), por exemplo.
“A bicicleta quando está muito rápida, vai a 30 km/h. Além disso, ela não foi feita para circular entre os veículos. Já a motocicleta é feita para circular junto dos carros, ônibus e caminhões, dividindo a mesma pista.”
Apesar do risco inerente, existem medidas que podem ser tomadas para reduzir a letalidade, diz Lemos.
Políticas que dão resultado
“Acidentes de trânsito nunca têm uma causa única e nunca têm uma solução única. A gente precisa falar de medidas integradas sempre”, afirma o urbanista Diogo Lemos. “Em geral, isso é a coisa que mais reflete nos motociclistas, mas que também traz benefícios para todos os outros usuários.”
Segundo o especialista, as políticas públicas que mais dão resultados são as que promovem uma boa gestão da velocidade pelo poder público.
“Isso significa falar sobre a adequação dos limites, principalmente a pautada pela recomendação da Organização Mundial da Saúde, de que em ambientes urbanos não deveria haver velocidades maiores do que os 50 km/h”, afirma Lemos.
Além disso, é preciso que a cidade crie uma infraestrutura segura.
“Isso passa desde qual é a largura da faixa de rolamento para um veículo — faixas mais estreitas tendem a induzir os motoristas a circularem em velocidades menores — até a adequação das calçadas, a distância das travessias, os semáforos, entre outras medidas”, explica.
Lemos também cita medidas como as tomadas pela cidade de Nova York, que não tem mototáxi, mas criou uma série de regras para evitar acidentes durante entregas feitas com moto. Há um limite de quilometragem para cada corrida e as empresas são obrigadas a pagar uma taxa mínima para motociclistas que trabalham um número mínimo de horas — para evitar que eles fiquem dependentes somente do número de entregas e acabem acelerando para fazer mais entregas.
Pesquisadores também afirmam que o trabalho de fiscalização e conscientização do público é fundamental.
“O que a gente tem visto Brasil afora é que cada vez mais se dá espaço para uma ideia falaciosa de que existe uma indústria da multa, como se as pessoas não precisassem ser fiscalizadas”, afirma Lemos. “Além disso, as campanhas de conscientização precisam ser direcionadas, você precisa saber quem é o público e como atingi-lo.”
Um exemplo de cidade que conseguiu reduzir a mortalidade é Fortaleza (CE), que tem reduzido o número de mortes no trânsito por 9 anos consecutivos. O município implementou uma série de ações conjuntas em educação, fiscalização e engenharia de tráfego.
A cidade manteve uma alta taxa de mortalidade por acidentes de trânsito desde 1996, primeiro ano em que há dados disponíveis, até 2014, quando o trânsito matou 496 pessoas. A partir de 2016, os números começaram a cair, atingindo 254 mortes em 2023, segundo números do DataSUS.
No entanto, as iniciativas foram mais bem sucedidas para evitar mortes em carros do que em motos: houve uma diminuição de 96,7% das mortes em carros entre 2014 e 2023; enquanto a redução de mortes de motociclistas foi de 41,8% no mesmo período, segundo a Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC), de Fortaleza.
O serviço de mototáxi é regulamentado desde 1997 na cidade, mas já era utilizado informalmente pela população antes disso.
Outra cidade onde o serviço já é parte do dia a dia da população é Salvador, que, ao contrário de Fortaleza, teve um aumento de mortes nos últimos anos.
De acordo com especialistas, embora não seja possível fazer uma correlação direta entre as mortes e o serviço de mototáxi, pois os dados não diferenciam entre pessoas que estavam pagando pelo serviço e passageiros normais, os dados são preocupantes.
Segundo o relatório anual de segurança viária, o número de passageiros de motocicletas mortos dobrou entre 2022 e 2023, ano em que um decreto regulamentou e permitiu uma grande ampliação do serviço de mototáxi, que já existia na cidade. Foram 682 passageiros feridos e 109 mortos em 2023 em comparação com 369 feridos e 40 mortos em 2022. Já o número de motoristas de moto mortos aumentou 23% no mesmo período.
A Uber e a 99 afirmam que tomam uma série de medidas para ampliar a segurança, incluindo treinamentos e botão de emergência. Os apps afirmam também que monitoram a velocidade das corridas e emitem alertas caso o motorista ultrapasse o limite de velocidade.
A Uber, no entanto, não informou se existe algum tipo de punição para motoristas que desrespeitem os limites.
Já a 99 diz que além dos alertas, emite notificações e pode até suspender a conta em caso de desrespeito reiterado.
Alternativa para a periferia
Para a vereadora de São Paulo Amanda Paschoal (PSOL), é necessário garantir mais segurança em vez de ignorar a realidade de milhares de pessoas que dependem de motos para transporte e sustento.
Ela afirma que o mototáxi é uma alternativa à população da periferia em um “cenário de insuficiência do transporte público, da crescente insegurança e da ausência de políticas eficazes de emprego e renda na cidade.” Paschoal acionou o Ministério Público para tentar impedir a prefeitura de apreender motocicletas.
“Mascarar a realidade e proibir os mototáxis, uma forma de transporte já utilizada pela população, em especial nas periferias, não vai resolver o problema da falta de segurança no trânsito”, diz ela.
“Quando o prefeito usa a periculosidade no trânsito para justificar a proibição dos mototáxis, ele se desresponsabiliza de ter que resolver problemas reais e concretos da cidade. O poder público tem por obrigação garantir segurança no trânsito para todas as pessoas, e essa é uma questão que já deveria ter sido resolvida.”
Alta velocidade e trânsito entre carros aumentam o risco de acidentes de moto
O uso do mototáxi como alternativa para a falta de transporte na periferia é um dos pontos mais levantados por defensores da liberação do serviço.
Para o motociclista Jr. Freitas, além de ser mais uma fonte de remuneração para os entregadores, o serviço também é muito usado pela população diante de um cenário de insegura pública.
“Além de ser mais econômico, traz segurança. Muita gente chega muito tarde do trabalho, dez, onze da noite. A gente vê que especialmente as passageiras mulheres não se sentem seguras de andar na rua. Em vez de terem que andar sozinhas, elas podem usar o serviço”, afirma ele.
As empresas argumentam que, por ser até 40% mais barato que o transporte por carro, o serviço por moto é muito mais acessível à população de baixa renda e a moradores da periferia e ajuda na integração com outros modais de transporte.
Nas outras 3,3 mil cidades onde a 99 atua, mais de um terço das corridas começam ou terminam a menos de 100 metros de estações de metrô ou de pontos de ônibus, afirma a empresa. No primeiro dia de funcionamento do serviço em São Paulo — que estava disponível apenas fora do centro expandido — aconteceram mais de 10 mil corridas, sem acidentes, diz a empresa. As corridas tiveram em média 13 minutos e percorreram 6 km.
A 99 cita um estudo da FGV (Fundação Getúlio Vargas) que projeta ganhos de R$ 28 milhões em arrecadação para a cidade e a geração de 13 mil empregos diretos e indiretos com o serviço.
Para Diego Dias Lemos, no entanto, é preciso lembrar — além da questão moral da perda de vidas — do impacto econômico que os acidentes geram na saúde pública.
“O impacto no SUS é algo que não pode ser deixado de fora da equação. Não podemos pensar só no aqui e agora, do quanto gera de renda para pessoas ou lucro para as empresas”, afirma Lemos, corroborando o argumento da prefeitura. “Se a gente traz os gastos com saúde, atendimento às vítimas e com a previdência, a equação é outra.”
Lemos defende, no entanto, que cabe ao poder público garantir outras formas de transporte, desde a ampliação do transporte público até o incentivo e criação de infraestrutura para o uso de bicicletas — e a prefeitura tem responsabilidade direta em garantir essas alternativas.
Processo continua em andamento
No momento, o serviço está suspenso devido à última decisão judicial, mas a empresas afirmam que vão recorrer.
Na Justiça, as elas argumentam que existe uma lei federal de 2018 que permite a existência do serviço e que ela se sobrepõe ao decreto municipal.
As empresas afirmam que o serviço de transporte de passageiros em moto por aplicativo é diferente do mototáxi. Enquanto táxis e mototáxis precisam de um registro emitido pela prefeitura para funcionar, os motoristas dos aplicativos não fazem parte de uma frota oficial da cidade.
As empresas argumentam que a prefeitura não pode proibir o serviço — no caso de transporte de passageiros por carros, Uber e 99 já obtiveram decisões em seu favor contra proibições do poder público — embora as cidades possam regular o serviço.
Já a Prefeitura afirma que tem competência para legislar sobre o tema e que “a segurança dos motociclistas, a redução no número de sinistros fatais no trânsito e o impacto no sistema público de saúde são as preocupações do prefeito Ricardo Nunes”.
Enquanto isso, os motociclistas afirmam que também vão à luta,
“A gente vai continuar tentando. Agora estamos conversando com os vereadores para abrir audiências públicas para dar voz para o trabalhador”, afirma Freitas.