“PEC das praias”: a história de como terrenos à beira-mar se tornaram bens públicos no Brasil

A polêmica Proposta de Emenda Constitucional que pretende mudar as regras do controle da costa brasileira, popularmente chamada de PEC das Praias, parte do fato de que, no Brasil, os terrenos beira-mar são públicos, considerados “áreas de marinha” e, portanto, pertencentes à União.

A origem desse entendimento remonta ao Brasil colonial, quando a Coroa portuguesa decidiu reservar para si esses espaços em vez de incluí-los nas sesmarias distribuídas aos colonizadores.

O objetivo era tanto manter controle sobre a produção de sal quanto garantir a defesa contra potenciais invasores vindos pelo oceano.

Estudioso das monarquias portuguesa e brasileira, o pesquisador e biógrafo Paulo Rezzutti conta à BBC News Brasil que o primeiro documento que regulamentava essas áreas foi a carta régia assinada por Dom João 5º (1689-1750) em 21 de outubro de 1710.

“Ela determinava que se reservasse para a Coroa portuguesa as marinhas. As praias do litoral deveriam ficar livres de construção”, ressalta ele.

Isso teve implicância nas chamadas sesmarias, as cessões de terras feitas pelo reino português a colonizadores que vieram ocupar e explorar o Brasil.

Segundo o pesquisador, no início não era clara a dimensão dessa faixa de terra, mas aos poucos novas cartas régias foram especificando melhor, até chegarem à medida de 15 braças — equivalente a cerca de 33 metros.

“Até a independência [do Brasil] o que prevaleceu foi a orientação geral para uso e exploração dos territórios portugueses na América, como a terra, rios, áreas costeiras e florestais. A normatização geral e colonial portuguesa seguia os interesses e as conveniências nas relações de lealdade e de fidelidade aos propósitos da Monarquia e dos sucessivos reinados, em particular”, comenta à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

“Por esta razão as normas e a legislação referentes aos espaços coloniais formam um cipoal de interdições, proibições e permissões, nominais, específicas, localizadas e temporárias”, afirma.

“As áreas costeiras das capitanias da América portuguesa estavam sujeitas a tais flutuações. Assim como havia a concessão de posses para usufruto da terra, ocorriam também concessões para a pesca, a ocupação, a extração e coleta de produtos naturais também em ambientes aquáticos, como a passagem de rios e a navegação de cabotagem.”

Tiros, sal e peixes

Os objetivos de manter essa faixa de terra sob o comando da Coroa eram por razões de segurança e também por um controle econômico.

Em uma época em que qualquer ataque externo viria do Atlântico, foram nas praias que os portugueses ergueram fortes. E era preciso manter a área livre de construções para o caso de serem necessários disparos de canhão.

“O propósito era garantir o controle e a defesa do território, bem como assegurar a exploração e o uso estratégico dessas áreas pela Coroa”, crava à BBC News Brasil o jurista Marcelo Crespo, coordenador do curso de direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

É história corrente, inclusive, a que explica que a distância das tais 15 braças tenham sido em virtude da potência dos canhões da época. Mas isso não é comprovado e pode ser mais lenda do que realidade.

“A ideia de que tinha a ver com os canhões é mais uma lenda do que um fato histórico comprovado”, afirma Crespo.

“Esse limite foi estabelecido mais com base em critérios administrativos e de gestão territorial do que em considerações militares específicas.”

Economicamente, manter essa faixa restrita à Coroa garantia um controle sobre a pesca na costa. E também na exploração do sal. “Só a Coroa poderia repassar essas áreas para quem quisesse explorar as salinas”, pontua Rezzutti.

À BBC News Brasil, o historiador Vitor Soares, quem mantém o podcast História em Meia Hora, lembra que “essa delimitação visava a garantir que a Coroa mantivesse o controle sobre áreas estratégicas para a defesa e a navegação, evitando que essas terras fossem apropriadas por indivíduos sem o controle estatal adequado”.

“Além dos aspectos de defesa e controle, essa demarcação tinha implicações econômicas, permitindo à Coroa controlar o uso dos recursos naturais costeiros e os pontos de comércio e pesca”, afirma Soares.

As tais quinze braças foram mantidas em 1818, por dom João 6º (1797-1826) e demarcadas apenas em 1831, no período da Regência.

Segundo Crespo, a medida de João 6º serviu principalmente “para melhorar a gestão e a arrecadação de impostos sobre essas áreas”.

“Em 1831, durante o período da Regência, houve uma tentativa de modernização e adaptação das leis às novas realidades do Brasil independente. A legislação foi ajustada para melhor adequar a administração dessas terras, garantindo que as áreas de marinha continuassem sob controle do governo, agora brasileiro, e fossem utilizadas para fins públicos e estratégicos”, ressalta o jurista.

“A legislação de 1818 também trouxe normas mais detalhadas sobre a ocupação e o uso dessas terras. O objetivo era assegurar que essas áreas estratégicas fossem administradas de maneira eficiente e que qualquer atividade realizada nelas estivesse sob o controle do governo, prevenindo abusos e garantindo a exploração considerada adequada dos recursos naturais”, avalia Soares.

“Essas mudanças refletiam a crescente preocupação com a proteção das áreas costeiras e a necessidade de um controle mais rigoroso sobre as terras de marinha.”

“A presença da corte portuguesa implicou na reacomodação das necessidades de transporte, comércio, construção e defesa do litoral brasileiro”, acrescenta Martinez.

“A definição e a exclusividade no aproveitamento das terras de marinha esteve vinculada às oportunidades para aqueles fins. Instalação de atracadouros, canais, estaleiros, armazéns, abastecimento e fontes de água, de matérias-primas, como madeiras, lenha, resinas, fibras, facilidades de circulação, construção e reparos navais.”

“Estas áreas eram selecionadas e reservadas para uso da Coroa, com duração variada, conforme a motivação e a necessidade, como o estoque para a extração e coleta de recursos apropriados para a navegação. Esta destinação pontual sobreviveu”, diz.

“Ainda hoje há espaços de usos exclusivo das forças armadas, para geração de energia, Terras Indígenas, a conservação da natureza e da biodiversidade.”

A legislação de 1831 trouxe um detalhe importante: o chamado “aforamento a particulares”, segundo o qual o poder público poderia conceder esses terrenos em regime de arrendamento de longo prazo a particulares, conforme considerarem apropriado — o chamado “refime de enfiteuses”.

“Em resumo, a lei permitiu que as câmaras municipais administrassem e utilizassem os terrenos de marinha para fins públicos, além de concedê-los a particulares mediante pagamento de uma taxa anual, regularizando assim a ocupação informal e arrecadando recursos”, diz Soares.

Professor no Museu Paulista da Universidade de São Paulo, o historiador Paulo César Garcez Marins lembra à BBC News Brasil que embora o “regime de enfiteuses” não esteja mais presente no atual Código Civil Brasileiro, “os que já existiam continuam válidos”.

“Você não pode criar outros, estabelecer novos, mas pode manter os já constituídos”, afirma.

Em 22 de fevereiro de 1868, um novo decreto acaba regulando todos os anteriores quanto às unidades de medida. “É quando as 15 braças se tornaram 33 metros, porque a unidade anterior não era mais usada”, explica Rezzutti.

De lá para cá

“A adoção do regime de propriedade privada da terra, a partir de 1850, levou ao retalhamento do território nacional em unidades de extensão e localização diversificadas. O ordenamento territorial escapou ao controle exclusivo do Estado e as áreas costeiras não foram exceção”, avalia Martinez.

“Desde, então, os conflitos e as disputas pela apropriação e uso do território no Brasil assumem proporções e violência crescentes na espoliação de áreas públicas e em conflitos sociais em torno das condições de vida e de trabalho de inúmeras contingentes populacionais regionais.”

“Terras indígenas, pescadores artesanais, marisqueiros, caiçaras, extrativismo em ecossistemas aquáticos e terrestres, como os de mangues e lagunas, são afrontados pelo turismo predatório, a pesca de arrasto, obras de infraestrutura, expansão urbana, desmatamento, lixões, poluição química, industrial e doméstica, aterramentos, vazamentos de petróleo que comprometem o saneamento ambiental marinho e costeiro”, argumenta o historiador.

Cada vez mais passou a haver a necessidade de um controle do Estado. Não mais por defesa ou valor econômico, mas para garantir a proteção.

“O interesse coletivo, o poder público, a qualidade de vida e as formações socioculturais e naturais do litoral, diariamente, são solapados por interesses privados, individuais e empresarias. Vale lembrar a emblemática atitude do presidente anterior. Ele se permitia pescar em áreas de proteção da natureza e fez anular a infração que lhe havia sido aplicada pelos órgãos federais, em benefício próprio”, critica Martinez.

No século 20, a questão das terras de marinha foi objeto de decreto do então presidente Eurico Gaspar Dutra (1883-1974), em 5 de setembro de 1946.

Na extensa lei que dispunha sobre os bens imóveis da União, ficou determinado que os terrenos de marinha eram todos aqueles a 33 metros “horizontalmente”, da “posição da linha do preamar-medido de 1831”. Por preamar se entende o nível da maré alta.

De acordo com Crespo, essa legislação, “com algumas modificações ao longo dos anos, é a base do que vigora até hoje”.

“Essa regulamentação foi mantida e adaptada ao longo dos séculos, sendo incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro após a independência do país. Atualmente, a legislação que trata das terras de marinha está incluída no Código Civil Brasileiro e em outras normas específicas que regulamentam o uso e a ocupação dessas áreas”, comenta Soares.

Ele ressalta que embora a legislação de 1946 “continue a ser a base para a regulamentação dos terrenos de marinha”, ela foi “complementada e atualizada por outras normas”, principalmente por uma lei de 1998 “que trouxe mais detalhes e modernizações sobre a administração, regularização, aforamento e alienação dos bens imóveis de domínio da União”.

O último capítulo dessa história, ao menos até a discussão levantada pela PEC das Praias, foi a Constituição de 1988, em vigor.

“Foi quando esses terrenos de marinha passaram a ser um preceito constitucional, incluídos como bens da União”, pontua Rezzutti.

“A PEC das Praias não é nada mais do que a face deste Brasil predador dos ecossistemas e das formas de vida. É um documento atual do processo de auto atribuição de privilégios às custas da população brasileira, de bens e do patrimônio público e coletivo globais”, critica Martinez.

“Em termos sócio-políticos, deveria ser tipificada como prática de racismo ambiental e, como tal, proscrita da pauta legislativa como afronta aos direitos humanos e aos princípios do Estado democrático de direito.”

O relator do texto no Senado, senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), tem argumentado que a PEC não será para “privatizar” praias, mas terá como efeitos positivos, por exemplo, conceder títulos de propriedade a comunidades que já ocupam as áreas — incluindo alguns grupos de quilombolas.

“A legislação sobre as áreas de marinha tem sido constantemente revisitada para ajustar-se às mudanças sociais, econômicas e ambientais”, diz Crespo.

“Recentemente, debates sobre a ocupação irregular, preservação ambiental e uso sustentável dessas áreas têm ganhado destaque, refletindo a importância contínua de uma gestão adequada e equitativa dos espaços públicos costeiros no Brasil.”

Eventos climáticos extremos não são culpa do agro, mas de ‘processo planetário’, diz agroambientalista

Ex-presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Marcello Brito, que hoje se define como agroambientalista, se tornou uma das principais vozes da aliança entre agronegócio e sustentabilidade no país – e um dos maiores críticos da ala do setor que segue produzindo de forma degradante e tem força no Congresso para pressionar por leis que reduzem a proteção ambiental.

Apesar da sua visão crítica sobre parte do agro, não concorda com os que direcionam ao setor a responsabilidade por eventos climáticos extremos como as inéditas enchentes que colocaram o Rio Grande do Sul em estado de calamidade.

Para ambientalistas, o avanço da soja sobre a vegetação nativa contribuiu para as inundações, ao reduzir, por exemplo, a capacidade do solo de reter água.

“Acho um comportamento abutre começar a apontar dedos. O setor de uso da terra no mundo é responsável por 30% de todas as emissões [de gases do efeito estufa]. Então, a gente poderia apontar o dedo diretamente pro restante, que é responsável por 70% de todas as emissões, e falar ‘vocês são os culpados'”, criticou, em entrevista à BBC News Brasil.

Hoje coordenador do Centro Global Agroambiental da Fundação Dom Cabral e secretário executivo do Consórcio Amazônia Legal, Brito rechaça os discursos de que é preciso derrubar a floresta para desenvolver o Norte do país, como apoiam lideranças da Frente Parlamentar da Agropecuária.

Por outro lado, também chama de “postura extremamente radical” a oposição de ambientalistas ao aumento da infraestrutura na região, por entenderem que isso alimentaria o desmatamento.

“Estamos discutindo profundamente agora bioeconomia na Amazônia [um modelo econômico desenvolvido a partir de recursos naturais extraídos de forma ética, sustentável e mantendo a floresta em pé]”, diz.

“Mas a mesma turma que torce pela bioeconomia é aquela que bloqueia [a construção de] estradas, ferrovias, portos. Então, eu pergunto: como incentivar um modelo socioeconômico sustentável de desenvolvimento [na Amazônia]? Você vai tirar os produtos de disco voador de lá?”, questiona.

Britto defende menos radicalismo e mais diálogo de ambos os lados, para que se avance para um modelo de desenvolvimento mais sustentável e resiliente, com acesso maior a mercados internacionais cada vez mais exigentes com a questão ambiental.

A mudança na estrutura de produção, porém, não é uma exigência apenas mercadológica. Diante de eventos climáticos cada vez mais frequentes, diz Brito, produtores precisam, cada vez mais, fazer um “balanço de riscos e benefícios” do seu negócio, baseado em pesquisa científica.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil – O Rio Grande do Sul é um estado de forte produção agrícola. Para ambientalistas, o avanço de áreas de soja, silvicultura e pecuária sobre matas nativas nas últimas décadas favoreceu as inundações que ocorreram agora. O agronegócio tem sua parcela de culpa na catástrofe?

Marcello Brito – Eu acho um comportamento abutre, seja quem for, começar a apontar dedos, que a culpa é desse ou daquele setor. O setor de uso da terra no mundo é responsável por 30% de todas as emissões [de gases do efeito estufa] do planeta. Então, a gente poderia apontar o dedo diretamente pro restante, que é responsável por 70% de todas as emissões, e falar “vocês são os culpados”.

Porque clima não tem cerca, então, os impactos de esfriamento ou aquecimentos dos oceanos que, no encontro das massas (de ar que evaporam desses oceanos), provocam esses extremos, não são feitos somente por um processo de desmatamento aqui no Brasil, mas num processo que é planetário.

Destruição da Amazônia, destruição de matas ciliares (vegetação na beira dos rios), destruição de reservas (ambientais) têm impacto de estruturação de clima? Sim, a ciência diz isso. “Ah, mas foi o histórico de plantios de soja no Rio Grande do Sul que provocou isso?”. Não gente, não foi.

Hoje, vi na televisão que teve uma série de tornados violentos no Meio-Oeste (dos EUA). Eu estava lá duas semanas atrás, é uma região de grãos dos Estados Unidos, desde 1800 e alguma coisa. Então, nós podemos afirmar que o aumento dos tornados lá é porque estão plantando soja e milho nesse espaço? Não, é irresponsabilidade nossa.

É de consenso científico que a gente precisa ter novos padrões de atuação.

Infelizmente, o ser humano só se move por tragédias. E eu acho que foi tristemente preciso acontecer uma tragédia dessa dimensão no Brasil pra gente entender que o trato que a gente dá às estruturas ambientais no seu relacionamento com os negócios do país tem que ser diferente. Agora, não dá para culpar ninguém.

BBC News Brasil – Não dá para culpar isoladamente? Digamos que vários setores, de certa forma, contribuem?

Marcello Brito – Hoje eu estava participando de um webinar (conferência online) e alguém citou que precisaríamos equalizar melhor os US$ 540 bilhões que são utilizados em subsídios com a produção agrícola no mundo. É quase risível o valor em um mundo que subsidiou no ano passado em US$ 7 trilhões os derivados de combustíveis fósseis [segundo levantamento do Fundo Monetário Internacional]. Olha, a comparação: US$ 540 bilhões para US$ 7 trilhões.

Os 60 principais bancos do mundo financiaram no ano passado, injetaram no setor de combustíveis fósseis, US$ 700 bilhões de dólares. Então, nós temos aqui um conjunto de responsabilidades que estão na sociedade, que não sabe controlar e pressionar pelas leis corretas; no setor privado, que não segue essas leis corretas; nos governos municipais, estaduais e federais do mundo inteiro, que não sabem equalizar o que subsidiam, como subsidiam, como fazem sua transição energética.

Ou seja, vamos apontar o dedo para nós, porque não tem ninguém, absolutamente ninguém, que não seja parte desse processo de degradação da estrutura climática mundial.

BBC News Brasil – Justamente um ponto importante nesse debate são as leis ambientais. Vemos no Congresso parlamentares ligados ao agronegócio defendendo novas leis que reduzem a proteção ambiental.

Marcello Brito – Sofremos nesse exato momento um grau de polarização política que emburrece o processo. Há 12 anos, conseguimos construir o Código Florestal com esses mesmos setores que são oponentes hoje.

Então, quando a gente vê hoje a postura extremamente radical da Frente Parlamentar (da Agropecuária) e, do outro lado, a gente vê uma postura extremamente radical de ambientalistas, por exemplo, a gente vê que o que está faltando é um equilíbrio para que esse debate ocorra. Acho que, na ânsia pelo protagonismo, nós estamos deixando o sentido de colaboração pré-competitiva fora disso.

É importante que o Executivo, o Legislativo e o Judiciário entendam que o enfraquecimento de leis ambientais brasileiras impactam o Brasil, não só nas tragédias, mas impactam o Brasil na sua inserção internacional.

Então, deveria ter, na frente de qualquer alteração de lei ambiental, uma pergunta assim: em que isso impacta na inserção do Brasil dos mercados internacionais? Porque é a vinda desses recursos que transformam a economia e a estrutura socioeconômica do país.

BBC News Brasil – O senhor citou o extremismo da frente parlamentar e dos ambientalistas. Em que posições esse extremismo se manifesta?

Marcello Brito – Eu faço parte do conselho de algumas ONGs, nacionais e internacionais. É importante que a sociedade cobre do setor privado transformações positivas na sua forma de atuação e visão de mundo. Mas é importante que o ambientalismo se renove também.

Por exemplo, estamos discutindo profundamente agora bioeconomia na Amazônia [um modelo econômico desenvolvido a partir de recursos naturais extraídos de forma ética, sustentável e mantendo a floresta em pé]. Mas a mesma turma que torce pela bioeconomia, é aquela que bloqueia [a construção de] estradas, ferrovias, portos. Então, eu pergunto: como incentivar um modelo socioeconômico sustentável de desenvolvimento [na Amazônia]? Você vai tirar os produtos de disco voador de lá?

É esse nível de dicotomia que expulsa a avenida central do debate, porque, em ambos os lados, tem gente de consciência que dá para sentar e construir um modelo. Mas não (sentam), os setores estão polarizados por política partidária, e não porque existe um forte contraste ideológico.

Minha viagem agora aos Estados Unidos foi muito elucidativa. Eu rodei uns 1000 km de carro entre Iowa e Illinois, dois estados republicanos, extremamente conservadores, onde, se você começar uma conversa falando de mudança climática, a conversa é automaticamente encerrada porque é conversa de democrata, de esquerdista.

Mas, se você roda por esses estados, é um festival de torres eólicas, de placas solares, de estações de biometano, dos maiores projetos de CCS (captura e estocagem de carbono) nos Estados Unidos, uma aceleração monstruosa nos processos de agricultura regenerativa.

Então, falar que a agenda ambiental é coisa de esquerda ou de direita é de uma pobreza infernal. Isso é inteligência estratégica.

Essa discussão barata político-partidária traz prejuízos com modificações absurdas de leis ambientais que trarão estrago ainda maior ao processo de produção de alimentos no Brasil. Torna o processo inflacionário, aumenta o valor dos alimentos e impacta sempre os mais necessitados, a parte pobre do Brasil.

BBC News Brasil – Uma das mudanças legislativas em debate no Congresso é a proposta de reduzir a reserva legal da Amazônia de 80% para 50% (percentual da propriedade particular que deve ser preservada). O argumento é que isso é necessário para o desenvolvimento da região. Por que discorda?

Marcello Brito – Discordo completamente. Se fosse dois séculos atrás, eu concordaria porque o mundo tinha uma economia movida à madeira.

Você cozinhava, você transportava, você fazia tudo [com uso de madeira]. Não é o caso agora. Existem outros modelos de desenvolvimento socioeconômico que podem ser feito com e através da floresta. Bioinsumos [produtos com componentes biológicos para melhorar a produção, como combate de pragas]; restauração florestal, seja ela comercial, seja ela conservação; [mercado de créditos de] carbono. Ou seja, nós estamos num processo de transição de zona econômica muito grande.

E quando a gente olha as pesquisas de tendência de consumo, o Banco Mundial estima que a partir de 2030 cerca de 60% da classe média mundial estará dentro dos onze países da APAC [região Ásia-Pacífico]. E essa região é a que mais planta árvores do mundo. O mundo só é positivo em [expansão de] florestas hoje [saldo líquido entre o que se planta e o que se destrói] por causa da China e da Índia.

A China plantou nos últimos dois anos quase 9 milhões de hectares de floresta [cerca de duas vezes o estado do Rio de Janeiro] e o ano passado reformou 4 milhões de hectares de floresta. “Ah, mas são os maiores emissores do mundo”. São, mas estão num processo de transformação.

Então, falar que você precisa derrubar mais floresta para fazer o desenvolvimento da Amazônia não é só um erro crasso, mas é um desconhecimento completo da estrutura socioeconômica, ciência e tecnologia existentes no momento.

BBC News Brasil – Uma parte da sociedade vê o agronegócio brasileiro como um setor atrasado, a favor de mais destruição ambiental. O senhor concorda com essa visão? Tem visto uma evolução do setor a partir dessas tragédias ambientais?

Marcello Brito – Não concordo de jeito nenhum porque eu conheço. E mais do que isso: eu conheço aqui no Brasil e conheço em quase outros 50 países do mundo. Então, posso fazer comparativos do que é produzido aqui com o que é feito nos Estados Unidos, no Canadá, na Alemanha, na França, na China, na Malásia, na Indonésia e mais não sei quantos países.

Isso [a visão de que o agro brasileiro é atrasado] vem de uma estrutura sociocultural brasileira, porque o modelo de desenvolvimento do uso da terra no Brasil foi completamente diferente de outros países. É só lembrar que começamos com quinze capitanias hereditárias [distribuídos pela Coroa Portuguesa durante a colonização]. Então, nós tínhamos 15 coronéis, depois dividiram aquilo em sesmarias [grandes lotes de terra], depois tivemos todo o processo da escravidão muito mal resolvido.

Nós não tivemos um modelo de estruturação do uso da terra organizado. E isso criou uma visão do coronelismo daquele processo. Só que, nessa palavra agro que usam como detração, cabe tudo que você queira colocar. O agro brasileiro são 5,2 milhões de propriedades rurais, 80% delas têm menos de 100 hectares, são pequenos produtores. E as pessoas acham que todos são latifundiários.

Isso mostra um desconhecimento monstruoso, inclusive, na hora que a gente vai ao supermercado e compra o alimento pelo preço que a gente compra aqui no Brasil, [e não sabe] que ainda é muito mais barato que em outros países do mundo.

Esse desconhecimento faz com que as pessoas não enxerguem [os pontos positivos]. Tem uma pesquisa da consultoria Mckinsey do ano passado sobre utilização de bioinsumo em vários países do mundo. O país mais avançado é o Brasil.

Na questão de plantio direto na palhada [método difundido entre produtores de soja em que as sementes são plantadas sobre a palha da safra anterior, evitando que os solos fiquem expostos entre a colheita e a semeadura], o Brasil é o país mais avançado no mundo também, a frente dos Estados Unidos, a frente do Canadá, a frente de França, e assim por diante.

Numa série de produtos, o Brasil há muito tempo já produz sem vínculo com o desmatamento. Papel e celulose, cana-de-açúcar, fruticultura, café, algodão: são cadeias que não têm link com desmatamentos e são muito apreciadas no mercado de fora. Então, você vê um desconhecimento muito grande.

BBC News Brasil – O senhor apontou o radicalismo da Frente Parlamentar da Agropecuária. A representação do agro no Congresso é mais atrasada do que o setor como um todo?

Marcello Brito – Sinceramente, eu não sei que agro que eles representam. Eu não acho que seja justo a gente colocar que esse pessoal representa a agricultura brasileira como um todo.

É uma bancada poderosa. O Brasil, por ser um país agrícola grande, tem uma estrutura de representação grande. O debate precisa ser enfrentado de forma democrática, de forma clara, com amplitude. Existem pontos que eles estão corretos, existem pontos que eles estão errados. Por isso eu sou a favor do debate democrático. Não concordo em alteração das leis atuais, não concordo em alteração do Código Florestal.

E acho que a gente tem que utilizar essa liderança agroambiental que nós podemos exercer como um fator de inserção do Brasil e não como fator de exclusão do Brasil.

Falta visão de governança internacional quando a gente quer transformar isso aqui num processo de desenvolvimento baseado em condições do século passado.

BBC News Brasil – Os prejuízos pelas enchentes no Rio Grande do Sul ainda estão sendo calculados, mas é certo que o setor agropecuário foi muito afetado. Como o setor pode se proteger desse novo cenário de extremos climáticos?

Marcello Brito – Lá atrás, quando íamos fazer um novo investimento, a gente fazia análise de risco financeiro. Depois, com o aumento de tecnologia agronômica, nós passamos a fazer análise de risco agronômico. Agora precisamos fazer análise de risco climático e de risco reputacional.

Se você levar todos os riscos ao pé da letra, você não investe mais em lugar nenhum. Então, a inteligência existe agora em você analisar, além dos riscos potenciais que fazem parte de uma análise investimento, também o outro lado, a análise de benefício. E as empresas que souberam analisar e balancear análise de risco com a análise de benefício são aquelas que saem na frente e conseguem produzir de forma mais clara.

Não queria citar o nome de alguma empresa específica, mas vou citar uma que é gigante do agro. A Amaggi [multinacional brasileira do agronegócio] tem uma fazenda, a Tanguro, que usa para pesquisa da ciência aplicada em agricultura há 20 anos. E os resultados dessas pesquisas são aproveitados em todas as outras áreas de produção que eles têm. Os parceiros são universidades, ONGs, institutos de pesquisas nacionais e internacionais.

Isso é análise de benefício aliada à análise de risco: “Olha, tem um pessoal estudando aqui que, se esse comportamento climático ocorrer no cerrado, vai ter um impacto x y z para mim. Mas, se eu tiver essas ações aqui em termos de ter florestas próximas, ou de agricultura regenerativa, ou de uma estrutura de produção de bioinsumos, vai ter outro impacto”.

Colocando as duas [análises] juntas, tenho um processo saudável de caminhar. O que vamos ter que fazer para o Rio Grande do Sul e para todas as outras regiões do Brasil é analisar o balanceamento de riscos o balanceamento de benefício, e atualizar de forma inteligente, à luz da melhor economia, da melhor ciência, os modelos de investimento e desenvolvimento que a gente tem que fazer.

BBC News Brasil – A análise de benefícios são ações que vão fortalecer a sustentabilidade da produção?

Marcello Brito – Vão fortalecer a resiliência do processo. A resiliência diz que você está criando um modelo que é melhor para o seu negócio, mas é melhor para a sociedade, pra sua região, para a natureza — ao fim, é melhor para o planeta, porque ele é resiliente.

Já perdemos o processo de mitigação [das mudanças climáticas]. Então, tudo que a gente olhar pra frente agora é processo adaptativo. A pessoa vai falar “ah, o cara é sonhador”. Não é ser sonhador, é realismo. E todas as principais empresas que são líderes em seus setores fazem isso.

Agora, eu tenho uma confiança que a geração que está entrando agora, depois da minha, é mais preparada para enfrentar esses extremos e para enfrentar essa reestruturação da economia mundial. Primeiro, porque a minha geração destruiu bastante, mas também criou muito em termos de ciência e tecnologia. E, segundo, porque está deixando um estoque financeiro nunca visto na história planetária.

Então, você não faz as coisas por falta de recurso. Você pode não fazer porque não foi inteligente o suficiente para criar as condições adequadas para atrair aquele recurso.

BBC News Brasil – Um dos prejuízos que preocupam no Rio Grande do Sul é a perda de safra de arroz. O governo anunciou a intenção de importar 1 milhão de toneladas, mas o setor reagiu dizendo que seria açodado e poderia afetar sua recuperação. Faz sentido importar?

Marcello Brito – Não sei te responder, para falar a verdade, mas a reclamação é um direito universal. Se não dá para analisar que precisa importar ou não, também não dá para analisar (ainda) o tamanho da quebra ou não.

Então qualquer um dos lados que diga qualquer coisa hoje pode ser chamado de açodado. O importante é você colocar o tema no debate. Porque, se for preciso importar, não é assim: amanhã eu ligo e falo “manda aí um milhão de toneladas para mim”. Não, é um processo que leva meses, desde a sua contratação, transporte, chegada e assim por diante.

Então, diz a boa prática que você deve se preparar e planejar. Se for necessário importar, vai ser importado. Se não for necessário, não será importado, porque ninguém em sã consciência irá importar para deixar parado em estoque.

BBC News Brasil – O senhor disse que votou pela primeira vez no PT ao apoiar Lula no segundo turno da eleição de 2022. Como avalia a política ambiental e agro do governo?

Marcello Brito – O meu voto foi feito na escolha por um candidato que tinha predileção por gente. Eu nunca fui de esquerda, nunca fui do PT, mas, naquele momento existia uma estrutura e uma necessidade social que precisava de um candidato assim.

Acredito que estamos nos movimentando bem no campo ambiental, mas só bem, poderia ser muito melhor, se a gente tivesse uma interação e uma discussão muito mais ampla e muito mais democrática.

Acho que está faltando ao governo atual uma maior interação com a sociedade, nos seus mais diversos recortes, na construção das estratégias nacionais.

Você pode dizer: “eles falam que estão consultando”. Consultar é uma coisa, dialogar é outra completamente diferente. Então, nessa avaliação até o momento, acho que falta, por parte de alguns ministérios, eu prefiro não citar quais, uma integração maior entre sociedade, setor privado, sociedade civil, ciência, academia, para que os resultados pudessem ser um pouco mais céleres do que são até o momento.

Pedágio ‘free flow’, ambulância e guincho pagos: como é a concessão ‘light’ que o governo desenha para rodovias

O Ministério dos Transportes está fechando, em parceria com o Banco Mundial, um modelo light de concessões de rodovias, que deve ficar pronto no segundo semestre.

Nesse novo formato, o concessionário só ficaria responsável pela manutenção da infraestrutura da estrada, sem custear serviços extras, como ambulância e reboque mecânico, que seriam pagos à parte pelo usuário em caso de necessidade.

O foco são rodovias menores, com tráfego mediano, e o objetivo é viabilizar a melhora contínua da qualidade da malha rodoviária do país, sem onerar tanto o Tesouro Nacional, nem o usuário. Com o modelo “enxuto”, poderia ser cobrada uma tarifa de pedágio compatível com a realidade econômica das localidades.

Hoje, essas estradas menores, com volume de tráfego entre 2 mil e pouco mais de 5 mil veículos por dia, são tocadas majoritariamente pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) ou estão em concessões que não se sustentam. Parte delas atualmente não cobra pedágio.

Cesta de ‘BRs’ elegíveis

O entendimento é que o mais importante é garantir que as estradas estejam em boas condições, sem buracos, seguras e bem sinalizadas, com contratos de concessão que se mantenham de pé, sem depender inteiramente do dinheiro público. Os serviços extras encarecem bastante o custo de manutenção da rodovia e só são usados eventualmente pelos motoristas, afirma o governo.

Sistema free flow na Rio-Santos, em Itaguaí, no RJ — Foto: Hermes de Paula/Agência O Globo/Arquivo

— Resgate mecânico, ambulância, todos esses serviços geram custo. Em rodovias de muito tráfego, há um volume de usuários para pagar essa conta com uma tarifa razoável. Em rodovias com menor volume de tráfego, não dá para ter todos os serviços, ou a tarifa fica muito alta, fica inviável. Então retiro esses serviços, mas eu tenho um piso muito adequado, uma sinalização boa. Se a pessoa quiser o serviço, ela vai pagar pelo uso. Não estarão todos pagando pela utilização — explica o secretário executivo do Ministério dos Transportes, George Santoro. — Tiramos da despesa pública e passamos para o setor privado, com um pedágio menor.

Ainda não há definição sobre quais rodovias seriam concedidas nesse novo modelo, mas o ministério estuda uma cesta de “BRs” elegíveis. Uma delas é a Rodovia do Aço (BR-393). Com 200 quilômetros de extensão, entre a divisa de Minas Gerais com o Rio de Janeiro e a cidade de Volta Redonda, a estrada tem um tráfego considerado mediano e a condição econômica do entorno compatível com a cobrança de pedágio.

Atualmente, a via é administrada pela KInfra, mas há possibilidade de ser devolvida à gestão federal, já que a empresa não teria cumprido os requisitos do contrato, segundo o governo. Há três praças de pedágio, com cobrança de R$ 6,50 para automóveis, caminhonetes e furgões, conforme a tabela disponível no site da empresa. Procurada, a KInfra não comentou o assunto até o fechamento desta edição.

Segundo o número 2 da pasta dos Transportes, os estudos contemplam mais de uma opção para o repasse das rodovias nesse modelo, chamado no ministério de “concessões inteligentes”.

Pedido de US$ 700 milhões

Em localidades com menor condição econômica, como em cidades do interior do Nordeste, a ideia inicial seria entregar para a concessionária a estrada já “arrumada”. Nesse caso, seriam usados recursos do Tesouro Nacional ou de empréstimos junto a organismos internacionais para fazer o investimento inicial. Já há, por exemplo, um pedido de US$ 700 milhões para o próprio Banco Mundial.

— Em algumas rodovias, se colocar na conta o investimento necessário para recuperar a pista, o pedágio vai ficar fora da realidade da economia das cidades — explica Santoro.

Pedágio por quilômetro rodado

Os pedágios nas rodovias concedidas no modelo “enxuto”, estudado pelo Ministério dos Transportes, não devem ter barreiras físicas ou cabines. A ideia é adotar o chamado free flow (fluxo livre). Por esse sistema, as tarifas são cobradas de forma eletrônica, por meio de tags nos carros ou pela leitura da placa do veículo. O usuário, por sua vez, efetuaria o pagamento posteriormente por meio de outro canal indicado pela concessionária. Neste mês, o ministério vai publicar uma consulta pública sobre o tema.

Segundo o secretário executivo do Ministério dos Transportes, George Santoro, a proposta também é que a cobrança seja feita por quilômetro rodado. Recentemente, o secretário esteve em Portugal e na Espanha, visitando as empresas de tecnologia que têm implementado o pedágio free flow em diversos países. Nas estradas da Europa e dos Estados Unidos, a cobrança eletrônica é mais consolidada.

— Vamos implantar o free flow nos próximos anos na maioria das rodovias do Brasil — diz Santoro.

Na foto, pedágio free flow em rodovia na região metropolitana do Rio — Foto: Márcia Foletto

Segundo Eric Lancelot, especialista líder em transporte do Banco Mundial, o novo modelo de concessão estudado pelo governo brasileiro seria um meio termo entre as concessões tradicionais de rodovias e o programa do organismo que já funciona no Brasil, conhecido como Crema.

O Crema prevê serviços de recuperação e manutenção pela gestão privada, com acompanhamento e controle, através de critérios de desempenho. Na prática, os governos “entregam” a estrada para uma empresa por um período determinado de tempo, mas ela só recebe se mantiver o ativo em boas condições. Não há cobrança de pedágio nesses casos e todo o dinheiro sai do Tesouro.

O modelo do Crema funciona no Brasil desde 1999. Hoje, cinco estados têm projetos ou estão em fase final de preparação junto ao Banco Mundial para implementar o programa em suas rodovias. No governo federal, a intenção também é aprimorar o Crema junto com a estruturação das “concessões inteligentes”.

Resiliência climática

Um estudo realizado pelo Banco Mundial em 2010 mostrou que houve economia de 20% em contratos de cinco anos na “primeira geração” do Crema, em comparação ao modelo em que toda gestão fica com o setor público.

— Para mim, as rodovias são como o sistema sanguíneo para o país, são vitais para a economia, para a inclusão social. É o maior patrimônio público imobilizado do país, merece ter o cuidado necessário. A manutenção deveria ser feita de maneira sistemática e eficiente — afirma o especialista do Banco Mundial.

A ideia do governo é que o novo modelo e também concessões já em andamento tenham ainda formas de financiar a infraestrutura para evitar o colapso por eventos climáticos extremos, como no Rio Grande do Sul. A ideia é destinar 1% da receita bruta das concessões a investimentos nesse aspecto.

Comitiva brasileira busca atrair mais interesse dos sauditas

O foco da primeira parada da comitiva brasileira, em Riad, é a participação em um encontro entre fundos de investimentos brasileiros e da Arábia Saudita, para tratar de estratégias, propostas de projetos e oportunidades de cooperação. O vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, se reúne amanhã com o ministro de Investimentos saudita, Khalid Al Falih, e com o ministro da Defesa do país, príncipe Khalid bin Salman.

O governo brasileiro vem atuando para aprofundar a relação com os países árabes. No início de março, o Ministério dos Investimentos saudita anunciou que estuda abrir um escritório de negócios em São Paulo. O país também anunciou, no ano passado, um investimento de US$ 10 bilhões (cerca de R$ 52,5 bilhões) no Brasil, sendo que a maior parte deve ir para obras do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Ao governo brasileiro interessa o estreitamento dessas relações, uma vez que o Oriente Médio é um dos maiores destinos dos produtos do agro brasileiro. Em 2023, o Brasil exportou US$ 3,2 bilhões (R$ 16,8 bilhões) para a Arábia Saudita — o maior valor da última década. No topo da lista de exportações estão carnes de aves, açúcares, melações e milho não moído, segundo a Apex Brasil.

Outro destaque da pauta de exportações para os sauditas, no ano passado, foram os óleos combustíveis de petróleo — que chegaram a US$ 101,7 milhões, crescimento de 436% desde 2019.

20 anos da Cosban

Em Pequim, membros da alta cúpula dos governos chinês e brasileiro se reúnem para debater a relação comercial e diplomática entre os países. A 7ª Sessão Plenária da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban) marca os 20 anos de criação do organismo, que coordena o diálogo entre Brasil e China. O encontro coincide com o aniversário de 50 anos das relações diplomáticas.

A comitiva brasileira trabalha com a expectativa de anunciar o aumento da pauta de exportações brasileira para a China e a atração de investimentos em infraestrutura, ciência e tecnologia, inovação e agricultura. “Estamos com expectativas muito positivas de resultados em todos os campos, inclusive na agricultura”, adiantou o ministro Pedro Murilo Ortega Terra, diretor do Departamento de China, Rússia e Ásia Central do Ministério das Relações Exteriores.

Alckmin desembarca em Pequim na terça-feira e participa de um encontro com especialistas em China na Embaixada do Brasil. No dia seguinte, haverá um seminário empresarial e cerca de 200 executivos brasileiros e chineses devem participar. Na sequência, Alckmin comparece à reunião do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC) — que reúne representantes de empresas como BNDES, Vale, Bradesco, Petrobras, Kwai, Alibaba e TCL.

Já a plenária da Cosban será na quinta-feira, no Grande Salão do Povo — sede do Parlamento chinês. Antes do encontro, Alckmin e o vice-presidente da China, Han Zheng, têm um encontro reservado. À tarde, o vice brasileiro terá encontros com empresários.

“Os 20 anos da Cosban são um marco importante para a consolidação das relações entre China e Brasil. Trata-se do principal mecanismo de diálogo regular e de coordenação entre os dois países. Agiliza a interlocução e facilita o estreitamento de laços”, salientou Alckmin ao Correio.

“49% dos pacientes da saúde do DF vêm do Entorno”, diz Celina Leão

Em entrevista ao programa CB.Poder — parceria do Correio Braziliense e a TV Brasília —, ontem (31/5), Celina falou sobre o cenário da saúde e avaliou que os problemas são pontuais, não são estruturantes, e que estão sendo tratados com atenção pelo Governo do Distrito Federal (GDF). Ela destacou ainda que 49% dos atendimentos na rede pública de saúde do DF vêm do Entorno. Celina informou que, nos últimos cinco anos, foram investidos R$ 48 bilhões na saúde pública do DF e foram contratados mais de 12 mil profissionais de saúde, além da construção de sete Unidades de Pronto Atendimento (UPAs). A vice-governadora prometeu ainda a construção de mais 10 UPAs até o fim do mandato.

Celina Leão detalhou medidas de reforço de profissionais na área da educação. Segundo ela, dos 4 mil novos servidores da área que serão contratados, 3.200 serão professores, 680 gestores públicos, e o restante orientadores educacionais. Sobre a contratação de novos policiais civis e militares, ela anunciou que o GDF está finalizando o processo burocrático para a contratação de 800 policiais civis e 1.200 militares ainda este ano.

Como a senhora está vendo os problemas na saúde do DF?

A gente primeiro tem que pontuar tudo que foi feito na saúde pública do DF. A gente avançou. A gente tem um entendimento que o Distrito Federal tem um processo migratório muito grande. Hoje, 49% dos nossos atendimentos são frutos da região do Entorno. Nós investimos mais de R$ 48 bilhões em cinco anos na saúde pública do DF. Só de contratação foram mais de 12 mil. Construímos sete UPAs, assinamos agora a construção de mais 10 novas. Então há um crescimento da oferta do atendimento, mas mesmo assim há um crescimento migratório paralelo no DF. Nós ganhamos uma cidade de Aracaju nos últimos 10 anos. Isso não nos dá o direito de não nos preocuparmos com coisas graves que acontecem na saúde pública. Mesmo com o tanto de investimentos que temos feito, a gente se depara com as coisas que têm acontecido na saúde pública. Nós tomamos medidas enérgicas nos últimos dias. O assunto são as mortes das crianças. Todas elas (as mortes) têm uma responsabilidade objetiva porque todas passaram por um médico ou uma médica da Secretaria de Saúde. Foi tomado todo o procedimento administrativo interno e também está sendo apurado pela Polícia Civil. Mediante tudo isso, estamos fazendo o programa Humanizar, que já existia dentro do Iges e na Secretaria de Saúde. Estamos fazendo um reinvestimento na qualidade do atendimento do nosso profissional. Temos gente muito boa, profissionais de carreira. Estamos investindo em cursos de capacitação, ampliando e tomando providência dentro de cada situação que ocorreu.

O que chama atenção são pontos como manutenção de ambulância, não parece ser muito complexo. Como isso está sendo tratado na Secretaria de Saúde?

As manutenções das ambulâncias estavam sendo feitas pela Secretaria de Planejamento. A partir do momento em que a Lucilene entendeu que isso precisava ser tocado internamente, foi passado para a Secretaria de Saúde. Conseguimos tirar do papel uma licitação que, há 10 anos, se falava sobre a contratação de ambulância para fazer o transporte entre hospitais. O Iges tem um contrato próprio com uma empresa que presta serviço e transporta paciente do Iges para a nossa rede pública. Essa empresa que presta serviço para o Iges foi notificada, porque houve uma má prestação de serviço, uma responsabilização objetiva, tomamos todas as providências, a secretaria notificou o Iges que notificou a empresa. Essa semana, saiu no Diário Oficial a licitação da SES para esse transporte de pacientes que vai permitir que o Samu faça a prestação de serviço só para pessoas que tiveram trauma. Mas, o transporte de paciente entre a rede da SES será feito pela empresa que ganhará a licitação.

O DF e o Brasil enfrentaram uma epidemia de dengue neste ano. O GDF implementou um reforço no sistema de saúde que foram as tendas de hidratação da dengue, que serão desativadas agora. Qual o balanço dessa medida?

As tendas atenderam 50 mil pessoas, com aprovação de 98% dos usuários. Foi um serviço complementar que precisamos por um tempo específico. Isso evitou um caos total na nossa saúde pública, porque essa dengue fez cair plaquetas dos infectados, trazendo a necessidade de internação e até de UTI. Eu não consigo calcular quantas vidas poupamos. Inclusive, muita gente que não conseguiu atendimento na rede privada foi atendida nas nossas tendas. Agora é preciso todo um trabalho nacional de prevenção, porque houve uma mutação no vírus, que já foi identificado como um vírus muito mais letal.

O que a senhora acha que aconteceu de 2022 para agora em relação à saúde?

Tivemos uma pandemia no meio do mandato passado e todo o esforço foi para salvar vidas naquele momento. Graças a Deus, saímos exitosos disso. O governador Ibaneis nunca negou a epidemia da covid. Foi o primeiro governador que fez o lockdown. Estamos tirando do papel três hospitais que estão sendo licitados agora, inclusive com ordens de serviço já lançadas. Todo um planejamento de saúde vem sendo construído pelo nosso governo desde o mandato passado, inclusive com a entrega de sete UPAs no ano passado, assinamos nesta semana a construção de 10 novas UPAs. Todos os meses, fazemos contratação de servidores. Vamos ter que mandar para a Câmara Distrital uma alteração na LOA (Lei de Diretrizes Orçamentárias) para que a gente possa fazer a contratação de enfermeiros, técnicos e médicos, porque aquilo que a Câmara Distrital colocou no orçamento para que fossem contratados os servidores, 100% foram contratados. Agora, há por parte da oposição uma antecipação de uma campanha eleitoral. Já não se falam mais do governo Ibaneis, falam governo Ibaneis e Celina. Eles falam daquilo que eles não deram conta de fazer. Entregaram um governo para nós com a saúde sucateada. Só de cozinhas de hospitais que nós reformamos foram cinco. Falaram de sucateamento de coisas que eles não fizeram, de UPAs que não construíram, de servidores que não contrataram. E falam hoje sobre CPI de Saúde. Eles deveriam investir em saúde. Muitos dos deputados da oposição que assinaram a CPI investiram zero em saúde. Alguns deles têm 90% das emendas parlamentares investidas em cultura. Não tenho nada contra a cultura, apoio e defendo. Mas, falar em saúde onde temos acontecimentos pontuais… Não temos problema de saúde como tivemos na época do Agnello e do Rollemberg, corrupção na área da saúde. São atendimentos pontuais que houve falhas humanas que estão sendo apuradas. Nesse tipo de situação onde se faz um alarme que não é verdadeiro sobre os nossos servidores faz com que muitos profissionais não queiram vir para a rede pública. Estão fazendo um desserviço para a população. Primeiro que tinham que dar exemplo e investir na saúde. Segundo que, da maneira como atacam nossa rede, muito profissional fala que não vai ficar porque se ele atender alguém e a pessoa vir a falecer ou ter algum problema, porque isso está passível de acontecer com qualquer pessoa que dê entrada na rede pública, ele vai ser responsabilizado e passar por um processo na Polícia Civil. Então, é importante a gente deixar muito claro que há um processo eleitoral antecipado. Nós não temos problemas estruturantes generalizados, temos problemas pontuais que todos estão sendo analisados e, com toda a firmeza do Estado, fazemos toda a fiscalização e a punição daquilo que está acontecendo. Claro que nunca vamos dar conta 100% de uma demanda que cresce todos os dias. A saúde sempre terá demandas e a gente tem enfrentado todas elas com a cabeça erguida, com muito trabalho e muito investimento. Os números não mentem.

O GDF também tem ações importantes na área da educação. O que a senhora pode falar a respeito?

Essa semana é muito especial para nós. O governador Ibaneis autorizou a contratação de mais de 4 mil servidores para a educação do Distrito Federal, sendo 3.200 professores, 680 gestores públicos e também orientadores educacionais. É uma contratação importantíssima, talvez uma das maiores da história dos últimos tempos. A educação é uma área que temos muita prioridade, temos cuidado com muito carinho. Temos a segunda menor taxa de analfabetismo do Brasil, aderindo a todos os programas do governo federal. Acredito que a educação está em um caminho certo. Sabemos que o profissional da educação precisa de valorização e educação.

Esse chamado é uma resposta à alta demanda. Houve um número muito grande de matrículas?

Sempre há uma necessidade de ampliação de vagas, até por conta do processo migratório aqui no DF. A secretaria de Educação, às vezes, precisa ampliar 10 mil, 15 mil vagas. Até construindo as salas de aula de forma acoplada, com um método construtivo mais rápido, para tentar dar resposta na medida em que as pessoas solicitam as vagas. A secretaria de Educação tem trabalhado muito. Precisamos falar também sobre as creches que foram criadas e no cartão creche. Assumimos o governo com quase 30 mil pedidos de vagas de creche, conseguimos 15 mil vagas. Temos trabalhado com novas creches sendo construídas, outras sendo conveniadas. Lançamos o cartão creche para ampliar e ofertar vagas para as entidades que fazem credenciamento na Secretaria de Educação.

Além da educação, o GDF está investindo também em capacitação. As inscrições estão abertas para o Qualifica DF e o Renova DF. De que forma o GDF vai oferecer essas capacitações buscando diminuir os índices de desemprego?

Temos muito orgulho desse programa, porque ele dá oportunidade para que as pessoas consigam entrar no mercado de trabalho. Temos um dos menores índices de desemprego na história do DF, que foi registrado nesta semana. São mais de 50 mil pessoas capacitadas pelo Governo do Distrito Federal. Isso dá condição para que a pessoa saia buscando um emprego com a condição necessária. Há um processo de acompanhamento da secretaria de Trabalho desde encaminhar a pessoa à Agência do Trabalhador à buscar vagas de acordo com os cursos que as pessoas foram capacitadas. Temos o Renova DF, que dá uma bolsa para que a pessoa consiga se capacitar, e o Qualifica, que qualifica dando uma condição para que a pessoa assista os cursos. São programas vitoriosos e estão abertas novas vagas tanto no Renova quanto no Qualifica. Lembrando que temos dentro destes cursos percentuais para mulheres vítimas de violência e pessoas em situação de vulnerabilidade.

Estamos entrando na semana do Meio Ambiente. Uma das questões importantes no DF são as questões das águas pluviais. Como está a obra que o GDF está conduzindo dentro deste tema?

É uma obra caríssima, custa mais de R$ 300 milhões. É uma escavação grande, com túneis enormes, está quase tudo pronto. A obra está sendo acompanhada de perto pelo governador Ibaneis. Até o final do ano, o projeto está sendo inaugurado. Vai resolver um problema histórico que são as inundações na Asa Norte e que prevê qualquer tipo de situação do futuro, trabalhando com a prevenção. Temos muito orgulho do programa Drenar DF, é um programa de captação de águas.

Além do Drenar DF, há outras obras de infraestrutura acontecendo?

Nos criticam pelas obras, mas vai perguntar para o morador que consegue chegar de 20 a 30 minutos mais cedo em casa. A gente pede desculpas pelo transtorno, mas sabemos que logo melhora o local onde as pessoas moram e a infraestrutura de mobilidade. O DF não tem pensado só em obras de infraestrutura, mas também na mobilidade. Hoje, somos a segunda capital com maior ciclovia do país. A ideia é que a pessoa consiga mobilidade. A ciclovia não é só esporte e saúde, é também mobilidade. Além das grandes obras que inauguramos — Riacho Fundo II, Túnel Rei Pelé, Sobradinho, Itapoã, Paranoá — nesta semana, lançamos mais um grande viaduto no Setor Militar Urbano, que precisava do anel viário do Parque Burle Marx, que foi feito, entregamos nesta semana. O novo viaduto vai beneficiar todas as pessoas que saem da Epia, do Setor Militar e do Noroeste, para que tenham a fluidez necessária. Compramos também mais vagões para o Metrô. Uma obra puxa a outra. Terminamos o viaduto de Planaltina e a população pediu a terceira faixa. Já iniciamos a obra da terceira faixa. Serão 10 novos vagões para reforçar o Metrô.

A população está questionando a nomeação de 800 policiais civis. A senhora pode falar sobre isso?

Estive na câmara federal e conseguimos colocar no orçamento. Não tinha essa previsão orçamentária para a contratação de policiais militares e civis. Estamos terminando o processo burocrático para chamarmos os policiais civis, são 800 policiais civis e também os 1.200 militares. Será este ano.

Quem compete com o Brasil pela liderança do ‘Sul Global’?

Em seu terceiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem sido apontado como um dos principais candidatos para liderar o chamado ‘Sul Global’ em sua busca por mais prestígio para países em desenvolvimento, principalmente da América do Sul, África e Ásia.

Ao longo do segundo semestre de 2023, o Brasil ocupou a presidência temporária do Mercosul. Até novembro deste ano, o país também ocupa a liderança rotativa do G20, grupo que reúne as 19 principais economias do mundo, além da União Europeia e União Africana.

Em 2025, o governo brasileiro ainda assumirá a presidência do Brics e sediará a 30ª Conferência sobre Mudanças Climáticas (COP-30).

Todas essas plataformas são vistas como oportunidades para que o país avance sua agenda — e de seus aliados.

Historicamente, o Brasil foi reconhecido como país com potencial de liderança na América Latina e um ator de relevância em fóruns multilaterais.

Essa imagem, entretanto, tem sido desafiada por um cenário internacional marcado por guerras e disputas geopolíticas e um contexto doméstico que requer cada vez mais atenção.

E críticos apontam que posicionamentos recentes de Lula, em especial sobre a guerra na Ucrânia, podem ser travas para a ambição do Brasil em se tornar uma ponte entre os países em desenvolvimento e as superpotências.

Nesse contexto, qual a força do Brasil nessa batalha pela liderança do ‘Sul Global’? E quem são os outros concorrentes ao posto de ‘capitão’ desse grupo tão heterogêneo e etéreo?

O que é o ‘Sul Global’?

Apesar do nome, o ‘Sul Global’ nada tem a ver com uma divisão geográfica, mas sim com as estruturas socioeconômicas, aponta Sara Stevano, professora da Universidade de Londres e economista especializada em desenvolvimento.

“Eu consideraria como parte do ‘Sul Global’ um país que tem uma estrutura econômica típica de contextos pós-coloniais, o que significa que a economia é normalmente baseada na exportação de commodities primárias ou mesmo bens manufaturados considerados de menor valor agregado”, diz.

O conceito também inclui as nações consideradas parte da “periferia da economia global” ou que mantêm uma certa dependência em relação aos países do ‘Norte Global’, em especial, Estados Unidos e Europa.

“O espaço que os tomadores de decisões políticas têm nos países do ‘Sul Global’ tende a ser mais estreito do que nos países do ‘Norte Global'”, afirma Stevano.

O termo é muito usado no contexto da mobilização de alguns países em torno de preocupações e interesses comuns, especialmente diante da relação com as grandes potências em questões como comércio ou mudanças climáticas.

Na prática, atualmente tais interesses se manifestam principalmente por meio do Grupo dos 77 (G77) nas Nações Unidas.

Formado por 134 países, o grupo afirma fornecer os meios “para os países do Sul articularem e promoverem os seus interesses econômicos coletivos e reforçarem a sua capacidade de negociação conjunta em todas as principais questões econômicas internacionais dentro do sistema das Nações Unidas e promover a cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento”.

China e Brasil, por exemplo, estão entre os que defendem uma reforma da ONU para aumentar a representatividade e o direito à voz das nações do ‘Sul Global’.

Sara Stevano ressalta, porém, que há diferenças muito grandes entre os países que pertencem ao grupo que não devem ser ignoradas.

Brasil e Moçambique, por exemplo, são ambos considerados parte do ‘Sul Global’ e possuem economias baseadas na exportação de commodities.

Mas enquanto o Brasil é um ator de influência no grupo, cujo PIB (produto interno bruto) chegou a US$ 2,17 trilhões em 2023, o país africano terminou o ano com US$ 20,8 bilhões, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI).

“Há países que estão na periferia da periferia”, diz Stevano.

Da mesma forma, os interesses e as bases das relações cultivadas por cada uma das nações com seus parceiros do Sul — e as potências do Norte — diferem profundamente.

Essa heterogeneidade está no cerne dos argumentos dos críticos ao termo, que temem que seu uso possa reforçar dicotomias e estereótipos imprecisos e ultrapassados.

Antes do termo ‘Sul Global’, a expressão ‘3º Mundo’ era usada com frequência.

O conceito surgiu durante a Guerra Fria e englobava as nações que não pertenciam nem ao chamado ‘1º Mundo’ (nações ocidentais e desenvolvidas) nem ao ‘2º Mundo’ (composto pelas nações socialistas e comunistas).

Outros conceitos, como ‘país desenvolvido’ ou ‘em desenvolvimento’, também ganharam mais espaço nas discussões internacionais.

No entanto, segundo Sara Stevano, são expressões associadas a uma ideia de desenvolvimento linear que raramente é verdadeira.

“Essa linguagem tem um ponto cego muito significativo, que é o fato de existirem relações de poder em jogo na economia global”, diz. “De certa forma, a terminologia ‘Sul Global’ deixa isso mais claro.”

Quais são, então, os países que se destacam no ‘Sul Global’ — e por quê?

China: força econômica e política

A China, segunda maior economia do mundo, é um caso bastante único — e por isso está no foco de muitos dos críticos da expressão ‘Sul Global’.

O país passou por acelerado crescimento econômico a partir da década de 80. Entre 1994 a 2022, teve uma alta média anual de 8,7% no PIB, com um pico em 2007 (+14,2%).

Há quem aponte que não só a posição econômica da China diante da economia global, mas também os níveis de influência geopolítica exercidos pelo país atualmente, são incompatíveis com os conceitos do ‘Sul Global’.

Mas para Nikita Sud, professora da Universidade de Oxford (Reino Unido) e especialista no tema, as experiências passadas com o imperialismo justificam a inclusão no grupo.

O grande período de influência europeia na China começou com as chamadas Guerras do Ópio entre 1839 e 1860, travadas contra o Império Britânico e motivadas principalmente pelo comércio do ópio.

“As ideias pregadas (pelo colonialismo) de dominação racial e civilização continuam até hoje. E é por isso que a China se vê como parte do ‘Sul Global’ apesar de competir economicamente com os EUA atualmente”, diz Sud.

“Mas a política local, a origem do país e a hierarquia baseadas no racismo alinham a China mais com o Sul do que com o Norte.”

O próprio governo chinês só passou a falar com mais frequência sobre o assunto e a se definir como parte do grupo recentemente (antes usava o termo “família de países em desenvolvimento”).

Em setembro de 2023, durante o discurso anual na Assembleia Geral das Nações Unidas, o vice-presidente chinês, Han Zheng, disse que a China é um membro natural do Sul Global pois “respira o mesmo ar que outros países em desenvolvimento e partilha com eles o mesmo futuro”.

Há quem veja nesse posicionamento mais uma estratégia para se opor à “hegemonia do Oeste” e disseminar uma imagem de grandeza.

“Para concretizar o sonho do presidente Xi de rejuvenescer a grande nação chinesa, a China precisa assumir um papel de liderança no mundo e o Sul Global serve de veículo para isso (…)”, afirmou Robin Schindowski, analista do think tank Bruegel, em um artigo de 2023.

No entanto, segundo o especialista em China, “preocupações internas” do governo Xi também levaram o governante a impulsionar essa agenda.

“Embora os fatores estratégicos não devam ser negligenciados, as preocupações internas mais humildes desempenham um papel igualmente importante na procura da China por mais oportunidades nas economias emergentes, especificamente os problemas de longa data do país com o excesso de capacidade industrial.”

Mas são justamente a força econômica e política da China que colocam o país como uma das lideranças do ‘Sul Global’.

Em uma reportagem publicada em abril, a revista inglesa The Economist utilizou um índice produzido pelo Centro Pardee para Futuros Internacionais (PCIF, na sigla em inglês), da Universidade de Denver, nos Estados Unidos, para comparar o nível de influência de alguns países entre os membros do G77.

Os Estados Unidos têm se destacado como o país com maior influência nas nações do grupo desde a década de 1970, mas a China aparece cada vez mais como um rival de peso, de acordo com o levantamento.

Segundo o Índice Formal de Capacidade de Influência Bilateral (FBIC) do PCIF, a influência chinesa começou a crescer a partir dos anos 2000 e deve ultrapassar a americana nas próximas décadas.

Ainda de acordo com o índice, a “capacidade de influência” da China sobre o G77 é aproximadamente o dobro da exercida pela França, o terceiro país mais influente entre o grupo, e cerca de três vezes a do Reino Unido, da Índia ou dos Emirados Árabes Unidos.

O índice é calculado com base em dados que abrangem as dimensões econômica, política e de segurança da influência bilateral formal. Isso inclui interações como intercâmbio diplomático, transferências de armas e comércio de mercadorias, mas não ações menos transparentes, como o financiamento de atores não estatais ou tentativas de interferir em eleições.

Os dados do FBIC apontam maior influência chinesa em 31 países do G77, com destaque para Paquistão, Bangladesh, Rússia e outros Estados do Sudeste Asiático.

Outro foco da influência chinesa é a África.

A China apoiou vários movimentos de independência africanos durante a Guerra Fria e, atualmente, a presença da potência asiática no continente se manifesta principalmente por meio de investimentos externos diretos, ajuda financeira, projetos de infraestrutura e empréstimos.

Em 2013, a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) da China foi lançada por Xi Jinping, apresentando a ambição de revigorar a antiga rota comercial da seda ao longo de parte da costa da África Oriental.

Teoricamente, isso deveria ter concentrado o investimento chinês na África Oriental, mas muitos outros Estados africanos também procuraram oportunidades através da BRI, fazendo com que a iniciativa se expandisse rapidamente.

Desde então, a BRI assistiu à construção de inúmeros projetos de infraestruturas em toda a Ásia e África, financiados por empréstimos chineses.

O projeto também chegou a países latino americanos: atualmente, 22 nações da América Latina e Caribe fazem parte da BRI.

O comércio entre a China e os países latino-americanos, aliás, bateu um recorde histórico em 2023.

A troca de mercadorias entre a região e o gigante asiático ultrapassou US$ 480 bilhões, segundo cálculos da BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, com base em dados da Administração Aduaneira da República Popular da China (AGA, na sigla em inglês).

A balança comercial foi relativamente equilibrada, com um ligeiro superávit favorável à América Latina, de US$ 2 bilhões.

O novo recorde no comércio de mercadorias com a China constitui mais um passo em uma tendência ascendente que tem sido registrada ao longo deste século.

O intercâmbio bilateral do país asiático com a América Latina e o Caribe (ALC) mal girava em torno de US$ 14 bilhões no ano 2000, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).

A China também assinou nos últimos anos tratados de livre comércio com Chile, Costa Rica, Equador, Nicarágua e Peru, e já negocia com outras nações da região.

Índia e a ‘ponte entre o Sul e o Ocidente’

No bloco informal, a Índia é a grande concorrente da China e aparece no Índice Formal de Capacidade de Influência Bilateral (FBIC) como o país mais influente para seis nações do G77 — entre elas, vizinhos como Sri Lanka e Butão.

Mas assim como Pequim, Nova Déli também tem buscado expandir sua influência para além de seus arredores, com foco especial na África.

O número de embaixadas indianas no continente passou de 25 para 43 entre 2012 e 2022, segundo a The Economist.

O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, afirma ainda que o país é o quarto maior parceiro comercial africano e a quinta maior fonte de investimento direto estrangeiro na região.

O país também se destaca na área da tecnologia, com importação de sistemas e plataformas digitais, incluindo tecnologias de identidade biométrica.

Segundo um relatório do Centro de Investigação Econômica e Empresarial (CEBR, na sigla em inglês), uma empresa de consultoria com sede em Londres, a Índia deverá manter um forte crescimento de cerca de 6,5% ao ano entre 2024 e 2028, e tornar-se a terceira maior economia do mundo até 2032, ultrapassando o Japão e a Alemanha.

Apesar da ascensão meteórica de sua economia, a Índiacontinua a se classificar como parte do ‘Sul Global’ e impulsiona sua posição de liderança no bloco informal.

O país organizou e presidiu em 2023 dois encontros da cúpula Voz do Sul Global, criada por Modi para realizar encontros online sobre desenvolvimento financeiro, crise climática e outros temas de interesse.

A abordagem indiana, porém, é distinta da chinesa.

Enquanto Pequim se projeta como uma alternativa clara aos Estados Unidos, Nova Déli busca angariar influência se posicionando como um intermediário ou uma ponte entre seus aliados do Sul e o Ocidente.

O governo Modi mantém uma relação especialmente próxima com os EUA, mas, ao mesmo tempo, adota posições bastante pragmáticas em política externa, se recusando, por exemplo, a condenar a Rússia pela invasão à Ucrânia.

“Só porque o país se identifica com o ‘Sul Global’ e é conveniente formar um bloco de aliados para negociar, por exemplo, questões climáticas, não significa que na hora de fazer comércio, atrair investimentos ou contrair empréstimos, ele não possa procurar um país do Norte”, diz Nikita Sud.

Quando se trata da defesa por reformas no sistema internacional, a posição indiana também reflete sua postura pragmática.

Na última reunião anual do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), realizada em outubro passado, China e Índia tomaram posições opostas na discussão sobre a reforma das instituições financeiras multilaterais e as cotas de voto dos países-membros no FMI.

Enquanto o governo indiano apoiou a proposta dos EUA para um aumento “equiproporcional” das cotas de contribuição financeira sem alteração no poder de voto dos países-membros, a China defendeu um aumento de ambas as cotas como forma de refletir a crescente participação dos países em desenvolvimento na economia global.

Em tese, as cotas dos países no FMI estão relacionadas à participação de cada um deles na economia mundial. Essas cotas determinam, entre outros fatores, o poder de voto dos países dentro do organismo internacional e a possibilidade de acesso a financiamentos de emergência.

Atualmente, China e Índia possuem, respectivamente, 6,4% e 2,75%. O Brasil detém 2,32% das cotas. Os Estados Unidos têm 17,43% das cotas, enquanto Alemanha e Reino Unido detêm 5,59% e 4,23%, respectivamente.

Brasil e as agendas prioritárias de Lula

Para muitos analistas, o Brasil também é um candidato forte ao posto de “líder” do ‘Sul Global’.

A ideia foi bastante debatida durante os dois primeiros governos do presidente Lula, que sempre teve essa como uma de suas agendas prioritárias em termos de política externa.

Com a volta do petista para um terceiro mandato, o país voltou a ser apontado pela imprensa internacional como uma voz nesse debate.

“Lula está se autodenominando o novo líder do Sul Global – e desviando a atenção do Ocidente”, diz uma matéria de abril do jornal britânico The Guardian.

A reportagem afirma que 2024 será um teste para a ambição do presidente, já que o Brasil está na presidência rotativa do G20 e sediará a reunião de cúpula do grupo em novembro (além da COP30 em 2025).

Um dos pontos principais da política de Lula para o ‘Sul Global’ é a reforma do Conselho de Segurança da ONU, com a criação de assentos permanentes para nações em desenvolvimento, além de equilíbrio do poder de veto.

Em uma entrevista no início do mês, Lula advogou por uma ampla reforma nos organismos financeiros multilaterais, como o FMI. E que os países que têm grandes dívidas externas possam pagar apenas parte delas, usando o restante em investimentos em suas infraestruturas nacionais.

“Uma coisa que queremos defender (no G20) é a mudança no sistema financeiro, criado após a Segunda Guerra. Aquelas instituições não funcionam mais. Elas sufocam os países”, afirmou o presidente.

O petista também defende que os países mais ricos e desenvolvidos colaborem mais e financeiramente com os países pobres na luta contra o aquecimento global e desmatamento.

Essa ideia é apoiada por outras nações do ‘Sul Global’, mas tem encontrado obstáculos nas últimas negociações.

Os países industrializados têm se mostrado relutantes em se comprometer financeiramente, preocupados especialmente com a possibilidade de serem responsabilizados legalmente pelos impactos da mudança climática no processo.

Em um artigo publicado no final de 2023, os pesquisadores Christopher S. Chivvis e Beatrix Geaghan?Breiner, do think tank Fundo Carnegie para a Paz Internacional, afirmaram que apesar da tradição brasileira de independência e não-alinhamento em termos de política externa, a autonomia do país se fortalece à medida que o impasse entre EUA e a China se amplia e o peso político e econômico da nação cresce.

“O Brasil quer evitar uma ordem mundial estruturada apenas pela competição entre grandes potências e, em vez disso, espera uma ordem multipolar onde os Estados do seu tamanho tenham mais voz nas instituições internacionais e maior influência em geral. Na opinião do Brasil, o surgimento de novas potências, especialmente a China, promete uma era de ‘multipolaridade benigna’, na qual o poder do Ocidente será reduzido e a influência das nações em ascensão será reforçada”, argumentaram os pesquisadores.

Mas para Laura Trajber Waisbich, diretora do programa de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, falta ao Brasil protagonismo e capacidade de liderança em algumas áreas.

“O Brasil tem capacidade de liderar em algumas agendas, mas em outras não”, diz a especialista. “E em quais áreas apostar deve ser uma decisão estratégica e pragmática”.

Para Waisbich, o país se destaca quando o assunto é a agenda ambiental e a reforma das organizações ambientais, dois temas que fazem parte do programa de política externa brasileiro há anos. Por outro lado, quando assuntos de segurança com menor proximidade ao Brasil estão em discussão, o país pode escorregar ao tentar se colocar como protagonista.

“Existe capacidade de liderança, de articulação e de ser uma fonte de inspiração para discussões sobre problemas globais, mas [o Brasil] não deveria ter a pretensão de ser um modelo ou líder para tudo”, diz.

Leonardo Ramos, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), explica que o desafio de Lula em avançar com a agenda relativa ao Sul é maior hoje do que no passado.

“O mundo mudou e muitas questões delicadas surgiram desde a última presidência do Lula, como as tensões entre Estados Unidos e China, a guerra na Ucrânia, o conflito em Gaza e a ascensão da nova direita”, diz.

Segundo o especialista, em alguns momentos a política externa obriga os países a se alinharem ou condenarem um dos lados envolvidos nos confrontos, causando constrangimentos e prejudicando a ideia de não alinhamento defendida por muitas das nações do Sul.

“E as próprias tensões domésticas e a polarização extrema têm ocupado mais a atenção hoje do que no passado. Com tudo isso, ele tinha mais margem de manobra e respaldo interno.”

Para Nikita Sud, nos últimos meses, dois países chamaram a atenção por seu posicionamento mais assertivo do que o normal frente à guerra em Gaza: Brasil e África do Sul.

Enquanto o governo sul-africano apresentou uma acusação de genocídio contra Israel na Corte Internacional de Justiça (CIJ), a diplomacia brasileira tem sido bastante crítica à atuação de Israel no enclave palestino e chegou a votar a favor de uma resolução da ONU que conclama o fim da venda e transferência de armamentos aos israelenses.

Segundo a professora da Universidade de Oxford, por terem se posicionado de forma distinta daquela incentivada pelos Estados Unidos, as nações se projetaram como “vozes” mais relevantes na disputa pela liderança de uma nova ordem global, apesar de terem sido alvo de muitas críticas.

Mas para o diplomata Paulo Roberto de Almeida, ex-ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington e ex-assessor especial do núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, os posicionamentos pouco neutros do Brasil têm justamente o efeito contrário e prejudicam sua busca por liderança.

Segundo Almeida, o governo do presidente Lula tem investido em uma política externa excessivamente “partidária e personalista” que causa fricções com as grandes potências do Ocidente.

O diplomata cita, em especial, a posição em relação à invasão da Ucrânia pela Rússia.

Apesar de defender uma mediação pela paz, o presidente brasileiro fez declarações que foram entendidas como uma forma de apoio brando à Rússia.

Em janeiro de 2023, durante visita do chanceler alemão Olaf Scholz ao Brasil, Lula chegou a dizer que a Rússia estava errada em invadir a Ucrânia, mas também sinalizou para culpa do próprio país invadido. “Continuo achando que quando um não quer, dois não brigam”, afirmou. Em maio do ano passado, ao participar do G-7, no entanto, Lula disse que condenava a violação da integridade territorial da Ucrânia.

“A insistência do Brasil em considerar todas as partes legítimas e a falta de neutralidade recente têm minado a posição do Brasil como líder”, diz Almeida.

Ainda segundo Paulo Roberto de Almeida, a busca por uma maior cooperação com outros países em desenvolvimento não deve vir em detrimento da relação com Estados Unidos e Europa – algo que tem acontecido, segundo ele.

“Essa aproximação de Lula com os países proponentes de uma nova ordem global tem causado alguns problemas com os tradicionais parceiros do Brasil no Ocidente, Estados Unidos e Europa Ocidental basicamente.”

Laura Trajber Waisbich, de Oxford, discorda. “Não precisa ser um ou outro”, diz. “Às vezes pode haver uma decepção ou um desacordo mútuo, mas na minha percepção é um desacordo que afeta apenas partes da relação bilateral, não o todo.”

Segundo a especialista, países como Reino Unido, EUA, Japão e Noruega, por exemplo, têm demonstrado confiança em relação à liderança do Brasil na área ambiental, apesar de tomarem posições distintas em relação a temas como a guerra na Ucrânia.

Para além da política externa, o cenário econômico mundial mudou profundamente desde os primeiros governos de Lula.

Entre 2002 e 2010, o PIB brasileiro teve um crescimento médio de 4,1%, ancorado, sobretudo, no crescimento das exportações de matérias-primas e commodities do Brasil para nações em vertiginoso crescimento, como a China.

Já em 2023, Lula assumiu em um momento de crescimento menor, inflação persistente e contas públicas afetadas pela pandemia de covid-19.

Ao mesmo tempo, há sinais de que o legado construído pelo atual presidente e pelo Brasil de forma geral ainda garante uma boa posição, segundo analistas.

“O Lula foi o único chefe de Estado de país emergente que participou das reuniões de cúpula do G77, do G20 e do Brics ano passado, certamente já pensando em reforçar essa posição de liderança”, diz Leonardo Ramos, professor da PUC-Minas.

Os dados do índice elaborado pelos pesquisadores da Universidade de Denver mostram que o Brasil é o campeão de influência em três países do G77: Bolívia, Paraguai e Uruguai. O cálculo considera o ano de 2022 como referência.

O Brasil foi o país com maior influência sobre a Argentina até 1997, segundo o FBIC, mas ficou atrás dos Estados Unidos nos últimos anos.

África do Sul: ‘líder moral’

Correndo nas margens da disputa, está mais um dos membros “mais antigos” dos Brics, a África do Sul.

O país se juntou em 2011 ao grupo que começou com Brasil, Rússia, Índia e China em 2008, mas é atualmente considerado um dos integrantes mais antigos, já que Argentina, Egito, Etiópia, Irã, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita foram convidados a aderir ao bloco.

A aliança, aliás, tem papel central no avanço da ideia do ‘Sul Global’ atualmente.

A própria expansão do grupo após a 15ª Cúpula do Brics, em 2023, foi considerada um enorme passo para que o ‘Sul Global’ tome o centro do palco da política global.

O presidente da África do Sul e anfitrião daquela reunião de cúpula, Cyril Ramaphosa, disse à imprensa que uma ampliação ainda maior é esperada para os próximos anos.

Segundo ele, os Brics “embarcaram em um novo capítulo no seu esforço para construir um mundo que seja mais justo, honesto, inclusivo e próspero”.

Sob a liderança de Ramaphosa, a segunda maior economia da África (atrás apenas da Nigéria, segundo dados de abril de 2024 do FMI) tem expandido sua força de liderança.

Para Anthoni van Nieuwkerk, professor da Universidade da África do Sul, o presidente “está restaurando a posição e o papel do país como líder moral global”.

“As mensagens e o tom usado por Ramaphosa sugerem um líder assertivo do Sul que compreende como o mundo funciona. Ele não tem medo de desafiar a narrativa dominante e está preparado para colocar sobre a mesa as exigências do Sul Global”, afirmou, em um artigo publicado no portal The Conversation em dezembro de 2023.

Essa ideia foi reforçada especialmente pela apresentação da denúncia à Corte Internacional de Justiça em Haia contra Israel e pelo posicionamento da diplomacia sul-africana frente ao conflito na Ucrânia.

Segundo Van Nieuwkerk, quando se trata da guerra travada no Leste Europeu, a África do Sul é especialmente motivada a advogar pela paz diante das consequências econômicas do confronto na África, que já sofre com a insegurança alimentar e energética.

Ramaphosa liderou uma missão de paz africana para o confronto, que apesar de ter fracassado em seus esforços de negociação, foi interpretada como um sinal da busca por liderança regional e global do presidente sul-africano, diz.

Ao lado do Brasil, a África do Sul também é uma voz importante nas negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre agricultura e um intermediário entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Rússia: o debate sobre o ‘R’ dos Brics

Em agosto de 2023, durante o Fórum Empresarial do Brics em Joanesburgo, na África do Sul, o presidente Lula destacou a importância do bloco para o avanço dos países em desenvolvimento, classificando o grupo como a “força motriz” do ‘Sul Global’.

Mas há grande discussão em torno do papel do ‘R’ dos Brics entre os países em desenvolvimento.

Apesar de sua clara oposição às potências do Ocidente, há quem questione a inclusão da Rússia entre os países do ‘Sul Global’.

“Assim como a China, a Rússia se encaixava nas leituras de potência média ou potência emergente quando esses conceitos se popularizaram. Mas vai ficando cada vez mais claro que são potências ‘reemergentes’ — foram grandes no passado, tiveram problemas e depois voltaram a crescer”, diz Leonardo Ramos, da PUC-Minas.

O especialista ressalta, porém, que enquanto a China se alinhou mais ao ‘Sul Global’ por muitos anos — por sua política de não interferência —, a tensão da Rússia com o chamado “mundo Ocidental” sempre foi mais inflamada.

Ao mesmo tempo, o governo russo parece interessado em promover a ideia de uma aliança contra o ‘Norte Global’ e usar alianças com o Sul a seu favor.

“A Rússia vem se engajando de maneira explícita com alguns países do Sul Global nas últimas décadas, de forma a tentar desempenhar algum papel importante para que esses países votem com a Rússia em fóruns internacionais”, diz Ramos.

Em fevereiro, Moscou organizou o primeiro “Fórum pela Liberdade das Nações”, com 400 delegados de 60 nações, para reunir os países do ‘Sul Global’ contra o que chamou de “neocolonialismo Ocidental”.

No ano anterior, sediou uma reunião de cúpula entre Rússia e África, durante a qual o presidente Vladimir Putin anunciou o cancelamento de mais de US$ 20 bilhões em dívidas históricas de nações africanas, segundo a agência de notícias estatal Tass.

O governo russo também fez lobby pela expansão dos Brics e enviou o ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, em várias viagens pelo ‘Sul Global’.

Mas quando o tema é o confronto com a Ucrânia, o alinhamento absoluto não é a realidade.

China, Índia e Brasil adotaram uma posição mais neutra. Mas outros integrantes do ‘Sul Global’ têm demonstrado inclinação maior a apoiar o lado ucraniano, especialmente em votações nas Nações Unidas.

Ainda assim, segundo o professor da PUC-Minas, os países do sul não deixam de ter um papel importante na política externa russa por representarem uma alternativa para importações e exportações em um momento de tensão e sanções internacionais.

Os dados compilados pelo Índice Formal de Capacidade de Influência Bilateral (FBIC) também mostram um crescimento da influência de Moscou sob o G77 nas últimas décadas, com previsão de expansão ainda maior até 2035.

Visão do direito: Atualização e modernização da Lei dos Portos

Por Rodrigo Tolentino Farias Vieira — O setor portuário brasileiro é responsável por aproximadamente 95% da movimentação de cargas no país, que possui cerca de 7.400km de costa e uma rede fluvial e lacustre de 63.000km potencialmente navegáveis. Para atendimento da demanda, proveniente do modal aquaviário, o Brasil conta atualmente com 30 portos organizados, que possuem 174 contratos de arrendamento vigentes, e 222 terminais de uso privado — os TUPs, conforme dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários — Antaq.

Considerando a relevância do referido modal para o desenvolvimento nacional, haja vista ser a principal porta de entrada e saída de cargas, torna-se imperiosa a atualização e modernização das normas e regulamentos que regem os portos e instalações portuárias.

Desde o advento da Lei nº 12.815/2013, conhecida como a Nova Lei dos Portos, que surgiu com o objetivo de atenuar os problemas de infraestrutura portuária e desenvolver uma maior competitividade entre os setores público e privado, ocorreu uma ampliação significativa do número de instalações portuárias. Consequentemente, esse desenvolvimento criou um cenário portuário amplo e com novos desafios a serem superados.

Após mais de uma década de vigência da Lei nº 12.815/2013, em que pese a desburocratização trazida, novos gargalos e entraves foram identificados pelos players, com potencial de inibir a realização de mais investimentos, gerando excessos de discussões no âmbito administrativo e judicial.

Com o intuito de atender à crescente demanda internacional por insumos e serviços, novas atualizações ao marco regulatório devem ser ponderadas e debatidas, visando superar, por exemplo, a morosidade e a complexidade de processos licitatórios, o engessamento dos contratos de arrendamento portuário, ociosidades nas instalações dos portos públicos, a dificuldade de contratar e a escassez de recursos das autoridades portuárias para prestação do serviço adequado, assim como a dificuldade encontrada pelos terminais de uso privado (TUPs) em regularizar terrenos de marinha e espelhos d’água.

Nesse aspecto, a atualização e modernização dos normativos deve ser pautada na linha dos grandes modelos internacionais, no sentido de buscar uma maior desburocratização dos processos, que têm como objetivo o desenvolvimento portuário nacional.

Não por outra razão, a Câmara dos Deputados instalou uma comissão de juristas para debater e elaborar proposta de revisão do arcabouço legal que regula a exploração direta e indireta pela União de portos e instalações portuárias. Algumas medidas de flexibilização e desburocratização podem ser inicialmente analisadas e merecem profunda análise, quais sejam: possibilitar a contratação direta pelas administrações portuárias constituídas sob a forma de estatais, para a execução de obras e serviços destinados ao desenvolvimento do Porto Público; maior agilidade para processos de alteração dos Planos de Desenvolvimento e Zoneamento (PDZ) dos Portos Organizados; ampliar a possibilidade de aplicação de recursos fora do Convênio de Delegação; garantir a autonomia das autoridades portuárias para a realização e gestão dos contratos de arrendamento e demais formas de exploração de áreas dentro dos portos organizados; bem como, possibilitar que as cessões de uso onerosa de empreendimentos portuários privados, referentes à regularização do espelho d’água, sejam feitas de maneira conjunta com os processos de outorga.

As medidas acima têm o intuito de atrair desenvolvimento e investimentos ao setor portuário, fortalecendo os portos públicos e terminais privados, facilitando a inserção de bens e serviços no cenário internacional, reduzindo o custo Brasil, gerando impactos positivos internos e aumentando a competitividade dos players nacionais, nos mercados interno e externo.

Rodrigo Tolentino Farias Vieira é internacionalista e advogado, sócio do escritório Gallotti e Advogados Associados, integrante da Comissão de Direito Portuário e Marítimo da OAB/DF

7 erros a evitar na reconstrução do Rio Grande do Sul

Com o nível das águas baixando em Porto Alegre e em outras cidades atingidas pelas inundações recentes, vai ficando cada vez mais evidente a extensão da destruição causada pelas chuvas em todo o Rio Grande do Sul. Agora, o grande desafio das autoridades é dar início às obras de reconstrução.

Priorizar as múltiplas demandas urgentes, quantificar a enorme necessidade de dinheiro e utilizar os recursos que chegam de diferentes fontes em prazos distintos aumentam a probabilidade de se cometer erros.

Um mês após o início das inundações, os planos para recuperar o Estado prometem a maior operação do tipo na história brasileira: estimativa da Confederação Nacional de Municípios (CNM) contabiliza mais de 581 mil desabrigados ou desalojados e prejuízos que já superam R$10,4 bilhões.

A BBC News Brasil consultou vários especialistas em reconstrução de diferentes perfis incluindo ecólogos, geógrafos, planejadores urbanos e até cartilhas da Organização das Nações Unidas (ONU) para descobrir que tipos de erros devem ser evitados na reconstrução do Rio Grande do Sul.

Conheça 7 equívocos comuns que podem colocar em xeque os esforços para reconstruir as cidades destruídas pelas inundações.

1. Demorar para resolver o que é urgente

Em uma situação de calamidade, um dos grandes desafios é equilibrar a tensão entre a necessidade de tomar decisões rapidamente e, ao mesmo tempo, evitar erros. É o que explica professor da Universidade de Illinois, Robert Olshansky, que pesquisa o processo de recuperação de cidades após desastres naturais.

“A velocidade de recuperação é importante para manter as empresas vivas, reconstruir a infraestrutura e fornecer alojamento temporário e permanente às vítimas de desastres. Se o poder público não agir rapidamente, muitas vítimas começarão a reconstruir por conta própria de maneiras e em locais que eles determinam”, alerta Olshansky, que ajudou a planejar a reconstrução de Nova Orleans após a devastação da passagem do Katrina, em 2005.

Ele acrescenta que apesar da urgência é fundamental que o uso dos recursos e as decisões sobre como se dará cada obra e investimento sejam planejados, para que a versão reconstruída seja o mais permanente possível.

“O planejamento pode maximizar as oportunidades de se coordenar o uso da terra e a infraestrutura, garantir segurança, usar design para melhorar a qualidade de vida dos moradores e reconstruir de maneira que atenda as preocupações de todos os cidadãos”, afirma o professor e urbanista.

“Mas se o planejamento demorar muito, será ineficaz”, alerta ele.

2. Ser pouco transparente sobre o uso do dinheiro

Henrique Evers, gerente de desenvolvimento urbano do World Resources Institute Brasil (WRI Brasil), organização que pesquisa soluções sustentáveis para cidades e clima, diz que é fundamental que o poder público aja com bastante transparência a respeito das decisões sobre o uso e distribuição do dinheiro, com regras claras para acesso ao financiamento e comunicação eficiente.

“Estabelecer uma governança clara para as decisões sobre esses recursos é fundamental, porque existe um grande risco de mau uso, seja técnico ou ético”, diz Evers.

O sociólogo Victor Marchezini, coordenador do Projeto Capacidades Organizacionais de Preparação para Eventos Extremos (COPE) no Cemaden, diz que é essencial que os governos federal, estadual e municipais mantenham um portal da transparência atualizado para que a sociedade saiba o que está sendo feito com o dinheiro destinado à reconstrução, inclusive os valores vindos de doações.

Segundo os especialistas, é importante garantir a credibilidade geral sobre o uso adequado de verbas para não prejudicar os fluxos de aportes. O desafio é também não engessar o sistema de aplicação de recursos a ponto de dificultar e retardar sua utilização.

Olshansky, do pós-Katrina, diz que garantir o bom uso do dinheiro é requisito para conseguir mais fundos de doadores internacionais que possam colaborar com a reconstrução, por exemplo. Mas é preciso cuidado para não burocratizar demais a liberação de dinheiro.

“Colocar burocracia impede o processo de reconstrução. Uma recomendação seria a de acelerar a liberação do dinheiro para atender a população e, ao mesmo tempo, investir em uma auditoria boa e sistema de contabilização, para investigar e corrigir eventuais erros durante o processo. Liberar primeiro e investigar depois”, diz.

3. Reconstruir exatamente como era antes

É consenso entre especialistas que não é possível reconstruir ou projetar infraestruturas no Rio Grande do Sul da mesma maneira que se fazia antes.

O Estado, que nos últimos anos sofreu uma sequência de eventos climáticos extremos, entre estiagens e inundações, precisa ser reconstruído para ser mais resistente ao clima do que antes.

Os especialistas apontam que as novas construções têm necessariamente que levar em consideração a realidade climática mais instável atual para terem capacidade de prevenir destruição.

Obras de contenção serão necessárias para proteger a população e a infraestrutura contra ameaças de estragos potenciais em maior dimensão.

“O clima continuará mudando nos próximos anos, mesmo se pararmos hoje de emitir gases causadores do efeito estufa. É preciso planejar estruturas adequadas a esse novo cenário, o que vale para casas, edifícios, espaços comunitários, estradas, infraestruturas urbanas e rurais, sistemas de transporte, equipamentos de saúde e outros, que precisam ser preparadas para choques e efeitos de longo prazo do “novo normal”, além de ter capacidade de rápida reconstrução em caso de desastres”, recomenda o Observatório do Clima.

4. Não ouvir a ciência

O Rio Grande do Sul tem uma vasta e qualificada comunidade acadêmica dedicada a pesquisar e sugerir caminhos para tornar o Estado mais preparado para enfrentar eventos climáticos extremos.

Walter Collischonn, hidrólogo e professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), destaca que a reconstrução do Estado exigirá a mobilização de cientistas, com dados e estudos aprofundados.

Ele cita o exemplo dos dados obtidos a partir da análise topográfica de Porto Alegre, que permitiram projetar quais as áreas seriam afetadas em caso de falha do sistema de proteção hidráulica.

“Fizemos mapas rapidamente indicando quais seriam as profundidades da água e decisões foram tomadas. Mas, para Canoas, a gente não tinha essa informação de topografia de alta resolução disponível. A reconstrução vai exigir essa informação bem detalhada”, diz ele, em nota do Observatório do Clima.

No dia 17 de maio, a Rede Sul de Restauração Ecológica, formada por integrantes da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), universidades, ONGs, entidades ambientais e setor empresarial, enviou ofício à Secretaria do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul e ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima propondo articular a criação de um grupo multi-institucional de especialistas, composto por pesquisadores de Universidades, instituições de pesquisa, secretaria e Fundação Estadual de Proteção Ambiental para construir um plano estratégico para o enfrentamento das emergências climáticas.

“Entendemos que o enfrentamento das emergências climáticas deve se dar em uma perspectiva temporal de curto, médio e longo prazo”, afirma o grupo.

5. Não ouvir os moradores atingidos

O fortíssimo terremoto que atingiu a China e destruiu diversas cidades em 2008 é apontado por Olshansky como um exemplo dos riscos de não envolver os moradores atingidos nas decisões de reconstrução das casas e da infraestrutura planejada.

O governo chinês reconstruiu tudo em tempo recorde, em uma operação bem-sucedida e impressionante, mas o projeto foi criticado pelo distanciamento da população e falta de atendimento às reais necessidades.

“A reconstrução da China após o terremoto de 2008 enfatizou excessivamente a necessidade de uma reconstrução rápida, ignorando muitos problemas sociais e econômicos”, diz o urbanista.

“A rápida reconstrução de novas unidades habitacionais em terrenos prontamente disponíveis, como em uma antiga usina siderúrgica, em vez de construir em lugares com acesso às redes da população e a serviços de transporte, inviabilizaram o projeto”, acrescenta ele.

No condado de Beichuan, onde 80% dos edifícios desabaram, 6 mil pessoas morreram e deslizamentos de terra e inundações causaram grande devastação – o governo decidiu transferir os moradores para uma nova cidade: uma nova Beichuan, construída a 23 km da original. A cidade foi construída para receber 35 mil habitantes e, no futuro, chegar a 70 mil, mas, até 2015, permanecia desocupada.

Para o Observatório do Clima, é essencial que a reconstrução do Rio Grande do Sul não reproduza as vulnerabilidades dos terrenos e não mantenha a degradação ambiental existente antes do evento extremo, e para isso é fundamental escutar as demandas de diferentes grupos sociais atingidos pelas chuvas.

Os esforços de reconstrução podem ser desperdiçados caso não atendam as necessidades da população atingida.

De acordo com o sociólogo Victor Marchezini, é importante incluir audiências públicas, bem como formar associações de afetados para que se possa garantir um “peso político maior nas rodadas de discussão pública sobre os rumos do processo de reconstrução e recuperação do desastre”.

6. Construir apenas infraestrutura ‘cinza’ e não ‘verde’

A degradação ambiental do Rio Grande do Sul, com muitas margens de rios desprotegidas sem vegetação nativa, e pouca capacidade de escoar e absorver a água das chuvas, teve papel relevante no desastre ambiental que vive o Estado, segundo ambientalistas ouvidos pela reportagem.

Para criar resiliência a ondas de calor, tempestades, enchentes, secas, frio intenso, aumento do nível do mar, ventos fortes e outros extremos, as chamadas soluções baseadas na natureza são indispensáveis, como aponta o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).

“É urgente iniciarmos ações de restauração ecológica em áreas de risco e nas bacias hidrográficas afetadas. A reconstrução não pode se dar nos moldes do passado, acreditando que os eventos climáticos extremos serão raridade e controláveis por obras de engenharia”, diz o grupo Rede Sul de Restauração Ecológica.

“Os eventos são mais frequentes e a transformação de áreas de risco em áreas de restauração ecológica auxiliará para que as populações humanas sejam menos afetadas no futuro”.

“Se nós tivéssemos mais banhados nesse momento, para absorver e para estacionar a água das chuvas, o impacto [das chuvas e inundações] teria sido menor”, diz o pesquisador Rualdo Menegat, doutor em ciências na área de ecologia de paisagem e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

“Como os banhados foram drenados e estão todos ocupados por plantações, ou por cidades, foi bem pior. Precisamos recuperá-los quando possível, plantar muito mato, muita mata nativa, e limitar a devastação.”

7. Não repensar estratégias e decisões

Na nova realidade climática, decisões que não previam eventos extremos devem ser reavaliadas pela sociedade.

Leis ambientais existentes, assim como as regras para ocupação da terra e estratégias de crescimento urbano, por exemplo, podem não funcionar para o cenário atual, na opinião da engenheira florestal Ana Rovedder, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Recuperação de Áreas Degradadas (Neprade/UFSM), e uma das fundadoras da Rede Sul de Restauração Ecológica.

“É um dever do governo do Estado retomar o debate de uma série de medidas e possibilidades que foram aprovadas antes de toda essa catástrofe, e que já se mostraram ineficientes para a realidade atual de necessidade de conviver com os eventos climáticos”, diz.

“Se nós formos ser realmente responsáveis com o futuro do Estado, com o futuro das novas gerações de gaúchos e gaúchas, nós precisamos parar e rever tudo que sabíamos”, acrescenta ela.

Nesse contexto, os municípios precisarão rever seus planejamentos regionais e planos diretores alerta o Instituto de Arquitetos do Brasil, escritório do Rio Grande do Sul.

Além disso, o órgão defende que é necessária a elaboração de planos setoriais, como de drenagem urbana e de ação climática, e que esses dialoguem com os novos planos diretores.

“Entender a realidade urbana sob os efeitos da crise climática é imperativo. O planejamento e a legislação devem acompanhar a realidade que se apresenta, de modo a mitigá-la e transformá-la.”

Nova ponte do Lago Paranoá deve sair do papel, afirma secretário de Obras

Os prazos e os detalhes da construção das etapas do BRT, além da Quarta Ponte no Lago Paranoá, foram pontos debatidos com o secretário de Obras, Valter Casimiro, no programa CB.Poder — uma parceria entre o Correio e a TV Brasília — desta segunda-feira (27/5). Às jornalistas Ana Maria Campos e Adriana Bernardes, ele comentou sobre obras de infraestrutura que estão ocorrendo na capital, e que somente este ano a previsão é de um investimento de R$ 2 bilhões.

Quando a Ponte JK foi construída, houve um concurso para a construção de uma obra monumental. No caso da Quarta Ponte, há algo parecido ou vocês querem um projeto mais funcional?

O projeto é para que a Quarta Ponte saia da Ermida Dom Bosco e chegue à Academia de Tênis José Farani. A ideia é fazer uma obra funcional e simples, para que possa atender à região do Paranoá, Itapoã e Lago Sul, oferecendo mais uma opção para quem está vindo de lá para a região central do Plano Piloto. Agora, é claro que precisamos pensar em uma ponte com corredor exclusivo para ônibus. Isso é para poder atender a uma possível linha exclusiva de um BRT vindo daquela região Leste, que hoje ainda não tem nenhum projeto. Temos toda uma malha de BRT prevista. A construção (licitação) do BRT Norte começa este ano. Também temos o projeto do BRT Sudoeste que vem pela Estrada Parque Núcleo Bandeirante (EPNB). Estamos concluindo o projeto do BRT Oeste, que é o da Estrada Parque Taguatinga (EPTG), Hélio Prates e agora a Estrada Parque Indústrias Gráficas (Epig). O BRT Sul, hoje, funciona relativamente bem, mas ainda falta um trecho que liga a Candangolândia até o terminal da Asa Sul. Precisamos também prever um BRT para a região Leste, que viria de São Sebastião e da região do Jardim Botânico.

Além da Quarta Ponte do Lago, o senhor comentou que deixaria para o futuro, entre esses projetos, a construção de uma ponte perto do Paranoá. Como será essa nova ponte?

Esse projeto vinha sendo discutido pela parceria público-privada (PPP) e o Tribunal de Contas, mas houve um entendimento do tribunal, que deveria ser feito por obra pública. A Agência de Desenvolvimento do Distrito Federal (Terracap) está elaborando esse projeto, que é da Ponte da Barragem, para poder ligar o Itapoã, Paranoá à região do Lago Sul, evitando o fluxo de carros em cima da barragem. Inicialmente, aquela ponte foi construída para uma via de serviço, mas, devido à necessidade de deslocamento dos moradores daquela região, virou uma via de trânsito intenso.

O senhor poderia detalhar um pouco a segunda linha do metrô e por onde ela irá passar?

A Companhia do Metropolitano e o próprio metrô iniciaram um termo de referência para que possamos colocar em licitação esse projeto: a segunda linha do metrô, que ligará a Esplanada dos Ministérios, o Sudoeste, o SIA, o Cruzeiro, a Candangolândia, o Núcleo Bandeirante, o Riacho Fundo, o Recanto das Emas, o Gama e Santa Maria. É uma linha grande para poder atender toda a parte de mobilidade da região Sul e Central, e que vai trazer uma maior agilidade para quem vem daquela região. A ideia é fazer um projeto com trens com maior capacidade. Brasília, quando fez o projeto de metrô, trabalhou com um projeto de quatro carros apenas. A gente vê que a necessidade de um projeto para seis ou oito carros vindo da região de Samambaia e de Ceilândia.

O metrô será na superfície ou subterrâneo?

Ele ficará na superfície em um determinado ponto, como do Cruzeiro para frente, pois não há problema algum. Do Sudoeste para cá, obrigatoriamente seria subterrâneo por conta da questão de tombamento, assim não teria nenhuma interferência na área tombada.

Na Esplanada também será subterrâneo?

Essa é a previsão para o projeto.

Esse é um projeto grande, existe alguma estimativa de preço?

Não há. Porque ainda precisa ser feito o detalhamento de todo o projeto. Eu até acredito que não seria um projeto para um único governo. Ele pode ser feito em etapas. Essa é uma obra de infraestrutura importante e vai melhorar o trânsito em várias regiões. O transporte sobre trilhos é muito mais eficiente, porque ele consegue carregar muito mais passageiros em cada viagem. Então, você vai diminuir a necessidade de carros vindos para a região central. O governador (Ibaneis Rocha) pediu para que começássemos esses projetos para deixar isso na prateleira aos próximos governos.

Vamos falar sobre obras que estão sendo executadas, como as do BRT. Em que pé está, hoje, a construção deles e qual a previsão para a conclusão de cada etapa?

O BRT Oeste, que está em plena execução, parte dele foi feita pela EPTG; estamos fazendo o corredor da Hélio Prates, que vai fazer a ligação com a linha que segue pelo Pistão Norte, até a ligação da EPTG. Dessa ligação vai descer um ramal para o Setor Policial Militar, que está concluído, e falta apenas essa ligação, daquele primeiro trecho da obra da Estrada Parque Indústrias Gráficas (Epig) e a ligação com o terminal da Asa Sul, que também está em plena execução.

O GDF também tem investido em infraestrutura urbana, principalmente em regiões que precisam de asfalto. Como estão esses projetos?

O governador, preocupado com a situação dos moradores, pediu para acelerarmos o projeto de infraestrutura do Sol Nascente e a conclusão de Vicente Pires. Há duas semanas, demos ordem de serviço no último trecho de Vicente Pires, que ainda não tinha o sistema de drenagem, e com isso conseguiremos concluir todo o sistema de drenagem da região. A ideia é asfaltar as ruas que ainda não foram asfaltadas. O Sol Nascente também está da mesma forma, estamos correndo para poder concluir o sistema de drenagem e asfaltar as ruas. O próximo ponto que vamos investir é a 26 de Setembro. Iniciamos um procedimento licitatório para a iluminação da 26 de Setembro e estamos elaborando o anteprojeto para pavimentação e urbanização da região e também contemplar toda essa parte de urbanização de lá.

Quando chove muito, algumas regiões sofrem bastante, como é o caso da Asa Norte e, às vezes,
da Asa Sul. O que fazer?

O projeto Drenar-DF envolve todas as regiões e não apenas o Plano Piloto. Existe um projeto Drenar Taguatinga que está sendo detalhado com o mesmo objetivo, evitar esses alagamentos pelas cidades. Assim como fizemos em Vicente Pires e estamos fazendo no Sol Nascente e na Asa Norte. A ideia é concluir essa carteira de projetos, provavelmente não conseguiremos iniciar todos esses projetos de drenagem ainda no segundo mandato de Ibaneis Rocha, mas eles ficarão em uma prateleira para os próximos governadores.

De onde vêm os recursos para tantas obras? E quanto o governo tem investido por ano nesses projetos?

Parte desses recursos vem da captação com os bancos de fomento, BNDES e Banco do Brasil. Tem um financiamento vinculado ao Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (Fonplata) e a outra parte vem da própria arrecadação do governo. O governo tem feito essa divisão para conseguir financiar essas obras e tem conseguido tirá-las do papel. Isso é muito bom, Brasília ficou muito tempo sem obras. Muitas pessoas até falam assim. “Ah, por que que fazem todas essas obras ao mesmo tempo? Isso acaba gerando alguns problemas de mobilidade na cidade”. Infelizmente, por ter passado muito tempo sem fazer obras, vimos que as necessidades foram se acumulando e a necessidade de implantação dessas obras ao mesmo tempo culminou em ter que começar isso. Pelo tanto de projetos que estamos citando aqui, nós vemos que ainda precisa de muito mais. A previsão para este ano é de um investimento de R$ 2 bilhões.

Líderes querem aparecer com planos de paz, mas quem lida com a realidade é a Ucrânia, diz chanceler

Chega a ser estranho pensar que Kiev é a capital de um país em guerra quando se circula pela cidade por estes dias. Ucranianos andam pelas praças sob um sol de verão inclemente, e não faltam cafés e restaurantes moderninhos. No trajeto de 16 horas de carro entre Varsóvia e Kiev percorrido pela reportagem, as maiores evidências de que havia um conflito em curso eram alguns outdoors espalhados pelas rodovias incentivando o alistamento militar.

Mas as constantes quedas de luz, efeito dos sucessivos ataques russos à infraestrutura energética ucraniana, e os sacos de areia empilhados nas entradas e nos corredores dos prédios oficiais são uma lembrança de que o conflito continua.

Uma guerra que, segundo qualquer ucraniano com quem se conversa nas ruas, teve início dez anos atrás, quando a Rússia anexou a Crimeia —e não no 24 de fevereiro de 2022 noticiado nos jornais, data à qual eles se referem como “invasão em grande escala”.

Esse histórico é trazido diversas vezes à tona pelo ministro das Relações Exteriores do país, Dmitro Kuleba, durante uma conversa com uma delegação de jornalistas de veículos latino-americanos, incluindo a Folha, na segunda-feira (27).

O convite é símbolo do esforço do governo ucraniano para aumentar sua influência sobre a região em um momento em que a ofensiva russa sobre o seu território disputa a atenção do noticiário com a guerra Israel-Hamas. Aos repórteres presentes, o chanceler conta que em breve deve apresentar propostas para a abertura de uma série de embaixadas de seu país na América do Sul e no Caribe.

A reunião com os jornalistas latino-americanos ocorre ainda ao mesmo tempo em que o presidente Volodimir Zelenski roda novamente a Europa pedindo ajuda militar, em antecipação a uma cúpula pela paz marcada para ocorrer na Suíça nos próximos dias 15 e 16 —sem a participação da Rússia.

A Bloomberg noticiou que Brasil, China e Índia não planejam enviar representantes seniores para o encontro. Antes, na quinta-feira (23), o assessor especial do presidente Lula (PT) para a política externa, Celso Amorim, e o chanceler chinês, Wang Yi, haviam divulgado um memorando ressaltando a importância da presença de Moscou nas negociações durante uma viagem de Amorim a Pequim. “Todas as partes envolvidas devem criar condições para a retomada do diálogo diretos e a desescalada do conflito até um cessar-fogo abrangente”, diz o texto.

A primeira reação de Kuleba ao ser questionado sobre a declaração é apontar que ela não faz referência ao respeito à integridade territorial da Ucrânia, um dos pré-requisitos da fórmula da paz proposta por Kiev. Ele diz que a ausência de menção à necessidade de retirada das tropas russas tanto das áreas ocupadas no leste e no sul ucranianos como da Crimeia é não só “muito inusual para documentos dessa importância”, como uma “mensagem em si”.

“Aqueles que, como o Brasil, querem que a Rússia participe da mesa de negociações partem de um entendimento da diplomacia tal qual preconizado pelos livros didáticos”, afirma.

Segundo essa perspectiva, para encerrar um conflito, bastaria que as partes envolvidas se sentem a uma mesa para negociar. O problema, continua o chanceler, é que esses livros se baseiam na ideia de que os atores que se sentam à mesa de fato desejam o fim da guerra. E a Rússia, ele completa, estaria usando as negociações como uma forma de criar uma cortina de fumaça para prosseguir com suas agressões de 2014 até hoje.

“Partimos dessa experiência, não a dos livros didáticos, mas a da vida real, quando pensamos na Rússia em um fórum pela paz.”

“É claro que todo líder global quer aparecer entre a Ucrânia e a Rússia e dizer que, graças aos seus esforços, um cessar-fogo foi obtido”, afirma Kuleba, numa aparente provocação a Lula, mas sem citar o nome do brasileiro. Mesmo antes de se reeleger presidente, o petista buscou se posicionar como um potencial mediador do conflito europeu, uma tentativa que por mais de uma vez levou a desentendimentos entre ele e seu homólogo ucraniano.

“Mas no final vai caber a nós lidar com a realidade. E esta é que a Rússia violaria o cessar-fogo. Daí a importância não de ter um acordo que parece bonito, e sim um que se sustente”, prossegue Kuleba. “Enquanto a Rússia achar que o padrão é ela e o resto do mundo contra o Ocidente, não negociará de boa-fé. Por isso é tão crucial ter os seus países [ao nosso lado]”, afirmou aos jornalistas.

O chanceler afirma que a ideia da cúpula da paz na Suíça, na qual mais de 80 países já teriam confirmado presença, é reunir países que acreditam que a integridade territorial da Ucrânia é, entre outros, um fator imprescindível para a paz. Essas nações buscariam articular em conjunto uma estratégia para estabelecer uma comunicação com a Rússia e integrá-la às conversas de modo que ela estivesse presente numa nova cúpula.

Enquanto isso, a guerra segue. No campo de batalha, a situação é desfavorável para Kiev. Desde o início do mês, quando lançou uma ofensiva surpresa pela fronteira norte de Kharkiv, Moscou já tomou uma série de cidades na província, naquele que foi seu avanço mais rápido desde o começo da guerra.

Zelenski espera conseguir reverter as derrotas obtendo novas remessas de ajuda militar de seus aliados. Nessa frente, tem sido mais bem-sucedido, e nesta segunda conseguiu que a Espanha se comprometesse com o envio de cerca de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 5 bilhões) durante uma passagem pelo país —nesta terça, o líder ucraniano esteve na Bélgica e em Portugal para assinar mais pactos de segurança.

Antes, conseguiu assegurar a remessa de cerca de R$ 300 bilhões por parte dos Estados Unidos depois de semanas em que políticos do Partido Republicano tentaram barrar o pacote no Congresso.

Analistas apontam, porém, que Kiev deve enfrentar cada vez mais obstáculos para garantir o fluxo de ajuda para continuar lutando. Nesse cenário, uma eventual vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas poderia ser desastrosa para o país invadido.

Contrariando as expectativas —e as declarações do próprio Zelenski—, Kuleba diz que a disputa pela Casa Branca não está no seu horizonte de apreensão.

“Não dá para se preocupar com uma coisa sobre a qual não tenho nenhuma influência. Se eu começar a me preocupar com o Trump agora, só vou me estressar. Estou preocupado com Kharkiv, com a próxima rodada de sanções. Porque são coisas sobre as quais tenho influência.”