Um dos desafios do Brasil e do mundo na descarbonização será reduzir a pobreza energética, tema que abrange universalização dos serviços, tarifas de energia, percentual da renda dedicada aos pagamentos da conta de luz e qualidade dos serviços. Dados de consulta do Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec), encomendada pelo Instituto Pólis e divulgada em junho, mostram que 36% das famílias gastam metade ou mais da sua renda mensal com meios para cocção de alimentos e energia elétrica.
Para quem possui renda familiar acima de cinco salários mínimos, a conta de luz causa menos impacto. Apenas 16% das pessoas nessa faixa de renda disseram ter metade ou mais de sua renda comprometida com pagamento de energia. No caso de renda familiar de até um salário mínimo, o percentual sobe para 53%. A análise também mostra que a população negra sofre mais para pagar a conta de luz, visto que 43% das famílias gastam metade ou mais de sua renda com energia.
Hoje, no Brasil, um em três consumidores das regiões Norte e Nordeste gasta mais de 6% da renda com a conta de luz, enquanto no Sul, Sudeste e Centro-Oeste um em cada seis destina mais que esse percentual.
Falta de acesso a serviços
A queima de lenha para aquecer residências ou fazer refeições é ainda uma realidade no país: representa cerca de um quarto da matriz residencial energética.
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— A questão da pobreza energética no Brasil está associada à falta de acesso a serviços modernos, à dependência de combustíveis poluentes, como a lenha, à infraestrutura inadequada, à baixa renda e à implementação de políticas governamentais ineficazes. Um estudo recente faz a relação entre pobreza energética e segurança alimentar por meio do uso dos refrigeradores. Para a conservação de alimentos, a população mais pobre utiliza refrigeradores antigos, com baixa eficiência — diz Elaine Cristina Silva dos Santos, pós-doutoranda do Instituto de Estudos Avançados da USP.
O governo trabalha em um programa para substituir o uso de lenha e carvão pelos mais pobres. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) lançou recentemente nota técnica que condensa experiências internacionais, para aprofundar o debate sobre a pobreza energética no Brasil.
— Recentemente, o governo brasileiro, além do programa Luz para Todos, que foca na universalização da energia, lançou outros projetos relacionados à pobreza energética. Um deles é o Tecendo Conexões, que servirá para mapear e formar um diagnóstico sobre a pobreza energética no país. Ainda não sabemos se essas iniciativas serão suficientes para a necessidade de energia somada às mudanças climáticas— diz Elaine Santos, pós-doutoranda do Instituto de Estudos Avançados da USP.
Para Joísa Dutra, diretora da FGV-Ceri (Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura), que tem participado de mesas de debates do G20 sobre a transição energética, o tema tem várias camadas e ganha outras interpretações além do percentual gasto pelas famílias com eletricidade:
—A questão climática traz mais preocupações, seja pela necessidade de resiliência das redes elétricas, seja porque as pessoas buscarão equipamentos que possam trazer conforto nas ondas de calor. Isso faz com que a regulação se torne central.
A tarifa no Brasil não captura diferenças entre classes sociais e diferentes tipos de consumidores, nem considera indicadores de qualidade.
— O cliente de Ipanema tem uma realidade distinta do cliente da Ilha do Governador. Qualidades de serviço e investimentos podem ser bem diferentes. A regulação precisa começar a enxergar essas nuances e avaliar a diferença da qualidade dos serviços ofertados em áreas diferentes de uma concessão — diz Joísa Dutra.
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Recentemente, o governo federal divulgou um decreto que servirá de base para a renovação dos contratos de distribuidoras cujo prazo do contrato de 30 anos vai expirar entre 2025 e 2031. São empresas que representam cerca de 60% do mercado, incluindo as duas maiores capitais do país, São Paulo e Rio. O decreto, cuja regulamentação será feita nos próximos meses pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), é um passo na direção da modernização do setor e da equidade tarifária, diz Joisa.
Uma outra questão envolvida na pobreza energética são as perdas não técnicas (os “gatos”, no jargão do setor). Para Vinícius Oliveira da Silva, do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), o governo tem uma oportunidade na mão: o processo de eventual mudança do controle da Amazonas Energia, distribuidora do maior estado do país e cujo índice de perdas não técnicas chega a quase 50%, o mais alto do Brasil.
Contrato em novas bases
No momento, discute-se a transferência de controle da distribuidora para outro grupo econômico, o que pode abrir espaço para rediscussão do contrato sob as novas bases reforçadas pelo decreto.
—O modelo regulatório da distribuidora precisa enxergar as particularidades da área de concessão, cujos 62 municípios têm diferentes realidades e desequilíbrios. As perdas não técnicas são um acesso paralelo à energia. As pessoas precisam de luz e buscam um caminho. Isso ocorre em números elevados também no Rio. A inovação regulatória é fundamental — destaca Silva.